A obesidade representa um desafio significativo para a saúde pública global, afetando aproximadamente 650 milhões de adultos em todo o mundo (WHO, 2021). Como condição crônica de difícil manejo, a obesidade severa frequentemente resiste às abordagens convencionais de tratamento. A cirurgia bariátrica emerge, neste contexto, como uma intervenção terapêutica eficaz para pacientes com obesidade grave (IMC ≥ 40 kg/m²) ou com obesidade moderada (IMC ≥ 35 kg/m²) associada a comorbidades, que não obtiveram resultados satisfatórios com tratamentos clínicos prévios.
É fundamental desmistificar a percepção da cirurgia bariátrica como último recurso ou sinal de fracasso pessoal. Pesquisas atuais demonstram que fatores genéticos, metabólicos, ambientais e psicológicos complexos contribuem para a obesidade, frequentemente tornando as intervenções cirúrgicas a opção de tratamento mais eficaz para casos específicos. A cirurgia representa, portanto, uma ferramenta terapêutica valiosa dentro do espectro de tratamentos disponíveis.
No entanto, o sucesso da cirurgia bariátrica não depende exclusivamente do procedimento em si, mas está intrinsecamente ligado ao preparo pré-operatório e ao compromisso contínuo do paciente com as mudanças de estilo de vida necessárias. Este post aborda os aspectos fundamentais da preparação abrangente para a cirurgia bariátrica, abrangendo componentes psicológicos, nutricionais e fisiológicos.
Preparo psicológico para a cirurgia bariátrica
A avaliação psicológica constitui um componente essencial do processo pré-operatório, recomendada por diretrizes internacionais e associada a melhores resultados pós-cirúrgicos. Esta avaliação não visa simplesmente qualificar ou desqualificar candidatos, mas identificar fatores de risco psicológicos e comportamentais que possam comprometer os resultados, além de estabelecer intervenções específicas para otimizar o sucesso a longo prazo.
A avaliação geralmente inclui:
- Histórico de padrões alimentares disfuncionais
- Presença de transtornos psiquiátricos (especialmente depressão, ansiedade e transtornos alimentares)
- Comportamentos de risco (como uso de substâncias)
- Compreensão realista das mudanças pós-cirúrgicas
- Capacidade de aderência às recomendações médicas
Alimentação antes da cirurgia bariátrica
Avaliação nutricional antes da cirurgia bariátrica
O acompanhamento nutricional pré-operatório vai muito além da simples orientação sobre restrições alimentares futuras. Inicia-se com uma avaliação abrangente que investiga:
- Histórico alimentar detalhado
- Padrões de comportamento alimentar
- Estado nutricional atual (incluindo deficiências vitamínicas e minerais)
- Conhecimento nutricional e barreiras para alimentação saudável
- Preferências alimentares e aspectos culturais relacionados à alimentação
Esta avaliação permite o desenvolvimento de um plano individualizado que prepara o paciente tanto para as restrições imediatas do pós-operatório quanto para as mudanças permanentes necessárias para o sucesso a longo prazo.
Nutrição comportamental e cirurgia bariátrica
A nutrição comportamental representa uma abordagem particularmente eficaz para candidatos à cirurgia bariátrica. Esta metodologia integra princípios da nutrição clínica com técnicas da psicologia comportamental, focando não apenas no “o que” comer, mas no “como” e “por que” comemos.
Princípios fundamentais da nutrição comportamental incluem:
- Atenção plena na alimentação (mindful eating): treinamento para reconhecer sinais de fome e saciedade, comer conscientemente e sem distrações, e apreciar os alimentos através de todos os sentidos.
- Identificação de gatilhos alimentares: reconhecimento de fatores emocionais, ambientais e sociais que desencadeiam compulsão alimentar ou alimentação na ausência de fome física.
- Reestruturação da relação com os alimentos: eliminação da categorização de alimentos como “bons” ou “ruins”, diminuindo a restrição cognitiva que frequentemente leva a ciclos de restrição-compulsão.
- Desenvolvimento de estratégias de enfrentamento: identificação de alternativas saudáveis à alimentação emocional para lidar com emoções negativas.
- Planejamento alimentar flexível: criação de estruturas alimentares que promovam escolhas nutricionalmente adequadas sem rigidez excessiva.
Pesquisas conduzidas por Papalazarou et al. (2021) demonstram que a implementação de princípios da nutrição comportamental antes da cirurgia está associada a melhores resultados pós-operatórios, incluindo maior perda de peso, menor incidência de transtornos alimentares e melhor qualidade de vida.
Dieta pré-operatória de muito baixa caloria
Em muitos centros especializados, recomenda-se uma dieta de muito baixa caloria (VLCD, na sigla em inglês) nas duas a quatro semanas que antecedem a cirurgia. Esta intervenção nutricional específica visa:
- Reduzir o volume do fígado, facilitando o acesso cirúrgico, especialmente em procedimentos laparoscópicos
- Diminuir o tecido adiposo visceral, reduzindo o risco de complicações operatórias
- Melhorar parâmetros metabólicos, como glicemia e perfil lipídico
- Iniciar o processo de adaptação a restrições calóricas e mudanças na composição da dieta
Um estudo multicêntrico conduzido por Tarnoff et al. (2019) demonstrou redução de até 30% no volume hepático após duas semanas de VLCD, associada a menor tempo cirúrgico e menor taxa de conversão para cirurgia aberta.
Treinamento de hábitos alimentares
Durante o período pré-operatório, é fundamental treinar comportamentos alimentares específicos que serão essenciais após a cirurgia:
- Mastigação adequada: treinamento para mastigar cada porção de alimento 20-30 vezes antes de engolir, facilitando a digestão e prevenindo obstruções.
- Controle de volume e velocidade: adaptação gradual a porções menores e tempo de refeição mais prolongado (mínimo de 20-30 minutos).
- Separação entre sólidos e líquidos: treinamento para não ingerir líquidos durante as refeições e esperar 30-60 minutos após consumir alimentos sólidos.
Estes comportamentos, quando internalizados antes da cirurgia, reduzem significativamente a incidência de complicações como vômitos, síndrome de dumping e desconforto gastrointestinal no período pós-operatório.
Como a cirurgia bariátrica muda a digestão
Anatomia e fisiologia do sistema digestivo normal
Para compreender plenamente o impacto da cirurgia bariátrica, é essencial conhecer o funcionamento normal do sistema digestivo. O processo digestivo se inicia na boca, onde enzimas salivares como a amilase (anteriormente denominada ptialina) iniciam a digestão de carboidratos complexos. Os alimentos, após serem mastigados e misturados à saliva, passam pelo esôfago até o estômago.
No estômago, com capacidade aproximada de 1,5 litros, o bolo alimentar é misturado ao ácido clorídrico e à pepsina, iniciando a digestão proteica. O esvaziamento gástrico é regulado pelo piloro, que libera gradualmente o quimo para o duodeno (primeira porção do intestino delgado).
No duodeno, enzimas pancreáticas e sais biliares continuam o processo digestivo. As principais etapas de absorção de nutrientes ocorrem no jejuno e íleo (porções subsequentes do intestino delgado), onde aproximadamente 90% das calorias e nutrientes são absorvidos.
Mudanças após a cirurgia bariátrica
As cirurgias bariátricas modificam fundamentalmente o processo digestivo e absortivo do seu organismo. A redução significativa do tamanho do estômago limitará drasticamente sua capacidade de consumir grandes volumes alimentares, representando talvez a transformação mais impactante em seu cotidiano.
Esta alteração física exige uma correspondente mudança psicológica, pois a comida não poderá mais desempenhar funções emocionais como recompensa, conforto, anestésico para emoções negativas, distração ou companhia. Por isso, o preparo pré-cirúrgico deve incluir não apenas o acompanhamento médico, mas também suporte psicológico através da terapia cognitivo-comportamental e orientação nutricional especializada.
Um profissional da nutrição comportamental trabalhará em paralelo com seu psicólogo, ajudando você a reconstruir sua relação com os alimentos, desenvolvendo novos padrões alimentares compatíveis com sua futura anatomia e necessidades nutricionais. O entendimento destas alterações anatômicas e fisiológicas permite ao paciente compreender:
- Por que a capacidade de ingestão será drasticamente reduzida
- A necessidade de suplementação nutricional específica e contínua
- A importância de seguir estritamente as recomendações dietéticas
- A razão para certos sintomas e intolerâncias alimentares que poderão surgir (dumping e hipoglicemia reativa)
- A necessidade de melhorar a relação com a comida
Esta compreensão facilita a adaptação pós-operatória e promove maior aderência às recomendações da equipe multidisciplinar.
Saiba mais sobre a nutrição comportamental AQUI. Saiba mais sobre a perda de peso após a cirurgia bariátrica.
Conclusão
A preparação para a cirurgia bariátrica representa um processo complexo e multifacetado que vai muito além de simples considerações técnicas cirúrgicas. A abordagem ideal combina:
- Preparação psicológica para transformar a relação com a comida e a imagem corporal
- Reeducação nutricional baseada em princípios da nutrição comportamental
- Compreensão profunda das alterações anatômicas e fisiológicas
- Conhecimento dos potenciais riscos e estratégias para mitigá-los
- Treinamento prático de comportamentos alimentares que serão essenciais após a cirurgia
Quando implementada adequadamente, esta preparação abrangente não apenas otimiza os resultados cirúrgicos imediatos, mas estabelece a base para o sucesso sustentável a longo prazo. A cirurgia bariátrica oferece uma ferramenta poderosa para o tratamento da obesidade severa, mas seus benefícios são maximizados quando o paciente está plenamente informado, motivado e preparado para as significativas mudanças de vida que o procedimento exige e possibilita.
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