A Síndrome do Intestino Irritável (SII) representa um dos distúrbios gastrintestinais mais comuns na prática clínica, caracterizando-se por um conjunto de sintomas crônicos que impactam significativamente a qualidade de vida dos pacientes. Apesar de não causar alterações estruturais no intestino ou aumentar o risco de câncer colorretal, a SII gera considerável sofrimento, absenteísmo laboral e elevados custos aos sistemas de saúde globalmente.
Este post apresenta uma abordagem abrangente e atualizada sobre os sintomas e critérios diagnósticos desta condição, baseando-se nas mais recentes diretrizes clínicas e evidências científicas. Se você sofre com dores abdominais recorrentes, alterações no hábito intestinal ou desconforto após as refeições, continue a leitura para entender melhor esta condição.
O que é a Síndrome do Intestino Irritável?
A SII é uma desordem crônica que pertence ao grupo das desordens do eixo cérebro-intestino, anteriormente conhecidas como doenças funcionais. Esta condição caracteriza-se pela presença de dor abdominal recorrente associada à defecação, mudanças no hábito intestinal ou alterações na consistência das fezes. Ao contrário das doenças inflamatórias intestinais, a SII não causa danos estruturais ao intestino, embora impacte significativamente a qualidade de vida.
Prevalência e epidemiologia
A SII afeta aproximadamente 10-15% da população mundial, com variações significativas entre diferentes regiões geográficas. Estudos epidemiológicos recentes demonstram uma prevalência mais elevada em países ocidentais (10-20%) comparada a países asiáticos (5-10%). Existe uma clara predominância em mulheres, com uma proporção aproximada de 2:1 em relação aos homens, sugerindo possíveis influências hormonais em sua fisiopatologia.
A condição geralmente se manifesta antes dos 50 anos de idade, com pico de incidência entre 20-30 anos, afetando pessoas em idade economicamente ativa e resultando em impacto socioeconômico considerável. Fatores ambientais como estresse psicossocial, infecções gastrointestinais prévias (SII pós-infecciosa ocorre em 10-15% dos casos), padrões alimentares ocidentalizados e histórico de abuso na infância têm sido consistentemente associados a maior risco de desenvolvimento da SII.
Critérios diagnósticos da síndrome do intestino irritável
O diagnóstico da SII é estabelecido pelos Critérios de Roma, um conjunto de diretrizes desenvolvido por renomados pesquisadores internacionais. Esses especialistas se reúnem periodicamente em Roma para atualizar os critérios diagnósticos das desordens funcionais do trato gastrointestinal, levando em consideração os estudos mais recentes realizados.
Nos Critérios de Roma III, de 2006, os critérios diagnósticos para SII eram:
Critérios de Roma III para SII (2006)
Inicialmente, os critérios diagnósticos para SII incluíam:
- Dor ou desconforto abdominal
- Alteração do hábito intestinal
- Alteração do formato das fezes
- Distensão abdominal
Esses sintomas deveriam ocorrer ao menos uma vez por semana nos últimos 3 meses.
Em 2016, os pesquisadores revisaram os critérios de Roma III, resultando na criação dos Critérios de Roma IV. Essa atualização foi realizada com base em novas evidências e conhecimentos científicos para melhorar a precisão do diagnóstico da SII e outras desordens funcionais do trato gastrointestinal. No entanto, esta última versão acabou por excluir muitas pessoas do diagnóstico, pois passou a considerar o seguinte:
Critérios de Roma IV para SII (2016) – Versão Atual
Com base em novas evidências científicas, os critérios foram atualizados para:
- Dor abdominal recorrente (excluiu-se “desconforto abdominal” por ser considerado inespecífico) ao menos uma vez por semana, nos últimos 3 meses
- Associada com duas ou mais características a seguir:
- Relacionada (alivia totalmente ou parcialmente) com a defecação
- Associada com mudança na frequência das evacuações
- Associada com alteração na consistência das fezes
É importante destacar que a exclusão do termo “desconforto abdominal” tornou os critérios mais específicos, porém mais restritivos. No entanto, estudos recentes sugerem que pacientes com queixas predominantes de distensão/flatulência, bem como aqueles com duração mais curta de sintomas, também deveriam ser considerados para o diagnóstico de SII, mesmo não atendendo estritamente aos critérios de Roma IV.
Sintomas extraintestinais da SII
Além dos sintomas digestivos, pacientes com SII frequentemente apresentam manifestações extraintestinais, incluindo:
- Fadiga e sonolência
- Cefaleia recorrente
- Dor lombar
- Alterações urinárias (noctúria, urgência miccional)
- Em mulheres: desordens menstruais e dispareunia ou vaginismo (dor durante relações sexuais)
Embora esses sintomas não façam parte dos critérios diagnósticos, sua presença pode complicar o quadro clínico e dificultar o diagnóstico diferencial. Na verdade, pesquisas recentes indicam que até 65% dos pacientes com SII apresentam pelo menos um desses sintomas extraintestinais, sugerindo uma fisiopatologia compartilhada relacionada à sensibilização central.
Classificação dos subtipos de SII
A classificação dos subtipos de SII baseia-se na Escala de Fezes Bristol (EFB), uma ferramenta visual que categoriza as fezes em sete tipos diferentes conforme sua consistência e aparência:
Escala de Fezes Bristol
- Tipo 1: Bolinhas duras, separadas como coquinhos (difíceis de eliminar)
- Tipo 2: Formato de salsicha, mas encaroçada
- Tipo 3: Formato de salsicha, com rachaduras na superfície
- Tipo 4: Formato de salsicha ou cobra, lisa e macia
- Tipo 5: Pedaços macios, com bordas bem definidas (fáceis de eliminar)
- Tipo 6: Pedaços pastosos, com bordas irregulares
- Tipo 7: Totalmente líquida, sem pedaços sólidos
A identificação do subtipo deve ser realizada sem o uso de medicamentos que alterem o trânsito intestinal (laxantes ou antidiarreicos), considerando apenas as características das fezes anormais. Isso ocorre porque muitos pacientes com SII apresentam períodos de normalização das fezes, que não devem ser considerados na classificação do subtipo.
SII com diarreia predominante (SII-D)
- Mais de 25% das evacuações são do tipo 6 ou 7 na EFB
- Menos de 25% das evacuações são do tipo 1 ou 2 na EFB
SII com constipação predominante (SII-C)
- Mais de 25% das evacuações são do tipo 1 ou 2 na EFB
- Menos de 25% das evacuações são do tipo 6 ou 7 na EFB
SII com padrão misto (SII-M)
- Mais de 25% das evacuações são dos tipos 6 ou 7 na EFB e,
- Simultaneamente, mais de 25% das evacuações são dos tipos 1 ou 2 na EFB
SII não classificada (SII-NC)
- Pacientes que reportam menos de 25% de evacuações dos tipos 1 e 2 e dos tipos 6 e 7 na EFB
Na prática clínica, para diferenciar entre SII-D e SII-C, geralmente é suficiente que o paciente reporte que seus movimentos intestinais anormais são usualmente dos tipos 6 e 7 para SII-D e dos tipos 1 e 2 para SII-C.
Exames para diagnosticar a SII
O diagnóstico adequado da SII deve seguir um processo sistemático que inclui:
- Anamnese detalhada: coleta cuidadosa da história médica, incluindo início, frequência e fatores desencadeantes dos sintomas
- Exame físico completo: avaliação abdominal e de outros sistemas relevantes
- Exames laboratoriais: reduzidos ao mínimo necessário
- Exames complementares: em situações específicas, conforme descrito adiante
Exames laboratoriais
- Hemograma completo: para avaliação de anemia e marcadores inflamatórios
- Proteína C-reativa (PCR): marcador inflamatório produzido pelo fígado
- Calprotectina fecal: marcador de inflamação intestinal, útil na diferenciação entre SII e doenças inflamatórias intestinais
Quando os parâmetros inflamatórios estiverem levemente aumentados e a probabilidade de colite for baixa, recomenda-se repetir os testes de PCR e calprotectina fecal antes de proceder com uma colonoscopia. No entanto, estudos recentes demonstram que valores de calprotectina fecal <50 μg/g praticamente excluem inflamação intestinal ativa, enquanto valores >250 μg/g têm alta probabilidade de doença inflamatória intestinal.
Exames complementares
Dependendo do quadro clínico e dos sintomas apresentados, outros exames podem ser necessários:
- TSH (hormônio estimulante da tireoide): recomendado para diferenciar de tireoideopatias, pois podem alterar o funcionamento intestinal;
- Sorologia para doença celíaca: avaliar anticorpos IgA contra transglutaminase tecidual e IgA total é importante para excluir doença celíaca, que desmonstra ser mais prevalente entre pacientes com SII;
- Exames de fezes: análises microbiológicas e parasitológicas para descartar causas infecciosas ou parasitoses/verminoses, especialmente em áreas endêmicas ou após viagens;
- Teste respiratório para SIBO (supercrescimento bacteriano do intestino delgado): Especialmente em pacientes com SII-D e distensão abdominal significativa, pois estudos recentes mostram sobreposição entre SII e SIBO que pode variar de 4-78% dos casos;
- Ultrassonografia abdominal: como complemento do exame físico em casos selecionados.
Endoscopia digestiva alta
Em casos de níveis elevados de anticorpos anti-transglutaminase tecidual IgA, recomenda-se realizar endoscopia digestiva alta com biópsias duodenais para avaliação histopatológica e exclusão de doença celíaca.
Quando a colonoscopia é necessária no diagnóstico da SII
A colonoscopia não é recomendada rotineiramente para pacientes com menos de 50 anos com suspeita de SII e sem sintomas de alarme (dor abdominal e diarreia de madrugada, sangue e/ou pus nas fezes, excesso de muco, febre). No entanto, torna-se necessário fazê-la na presença de fatores de risco ou sinais de alerta, como:
- Anemia ou leucocitose inexplicadas
- Idade superior a 50 anos (para rastreio de câncer colorretal)
- História familiar de câncer colorretal, doença celíaca ou doença inflamatória intestinal
- Tratamento recente com antibióticos de amplo espectro
- Residência em áreas endêmicas para doenças infecciosas intestinais
- Sintomas de início recente ou ocorrência predominantemente noturna
- Perda de peso não intencional
- Febre inexplicada
- Sangramento gastrointestinal ou sangue nas fezes
- Massa abdominal palpável
- Ascite
Considerações finais
Não fique desconfiado se seu médico não solicitar múltiplos exames ou colonoscopia, pois a SII é um distúrbio funcional e não orgânico. Embora prejudique significativamente a qualidade de vida, ela não causa lesões intestinais permanentes nem aumenta o risco de câncer colorretal. A menos que você apresente sintomas de alarme ou fatores de risco, exames invasivos geralmente não são necessários.
É fundamental manter uma relação de confiança com o profissional de saúde e seguir as recomendações individualizadas. Lembre-se de que o objetivo principal do tratamento é o controle dos sintomas e a melhoria da qualidade de vida, não necessariamente a “cura” completa, já que a SII é uma condição crônica com períodos de melhora e exacerbação.
Saiba mais sobre quais são as causas e quem desenvolve a síndrome do intestino irritável.
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Mas, lembre-se: não é indicado manter a fase de exclusão da dieta de exclusão por mais que 6 semanas e, além disso, o acompanhamento profissional é importante porque parte dos pacientes possuem outras condições clínicas associadas que o protocolo não resolverá por completo e, portanto, necessita de condutas adicionais.
Referências
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