A doença diverticular do cólon representa uma condição altamente prevalente no mundo ocidental, afetando aproximadamente 50% das pessoas acima de 60 anos, e que caracteriza-se pela formação de pequenas bolsas (divertículos) que se projetam para fora da parede intestinal, principalmente no cólon sigmoide. Por décadas, a ingestão de fibras alimentares tem sido considerada crucial tanto na prevenção quanto no tratamento desta condição.
No entanto, pesquisas recentes têm questionado significativamente esta relação, promovendo uma necessária revisão de paradigmas sobre o tema. Assim, neste post, vamos aprofundar de forma crítica o papel das fibras na doença diverticular, desde a origem histórica da “hipótese da fibra” até as evidências científicas mais recentes que têm transformado nosso entendimento sobre esta relação.
A origem da “hipótese da fibra”: contexto histórico
A associação entre baixo consumo de fibras e doença diverticular foi proposta inicialmente em 1969 por Neil Painter. Em 1971, Painter e Denis Parsons Burkitt publicaram sua “hipótese da fibra” no British Medical Journal, sugerindo que a doença diverticular seria uma “doença da civilização ocidental” causada principalmente pela redução do consumo de fibras nas dietas industrializadas.
Esta hipótese foi baseada principalmente em observações epidemiológicas: a baixa prevalência da doença em populações africanas (que consumiam dietas ricas em fibras não refinadas) contrastava com sua alta prevalência em países ocidentais. Assim, Painter e Burkitt propuseram que uma dieta pobre em fibras resultaria em fezes mais viscosas e de menor volume, exigindo maior pressão intraluminal para movimentá-las através do cólon. Esta pressão aumentada, ao longo do tempo, causaria herniações da mucosa nas áreas mais frágeis da parede intestinal, formando os divertículos.
Por quase cinco décadas, esta teoria permaneceu praticamente inquestionada, influenciando diretrizes clínicas e recomendações nutricionais em todo o mundo. No entanto, a base de evidências que sustentava esta hipótese apresentava limitações significativas, como a falta de ajuste para a expectativa de vida mais baixa nas populações africanas estudadas e a coleta não individualizada de dados dietéticos.
Evidências recentes sobre o consumo de fibras na doença diverticular
Estudos mais recentes têm desafiado fundamentalmente a “hipótese da fibra”. Em 2012, um estudo transversal conduzido por Peery e colaboradores com 2.104 participantes submetidos a colonoscopia trouxe resultados surpreendentes: uma dieta rica em fibras não demonstrou proteção contra a doença diverticular (diverticulose assintomática). Mas, contrariamente às expectativas, o estudo sugeriu que uma maior ingestão de fibras poderia estar associada a um aumento na prevalência de diverticulose em uma relação dose-dependente.
Em 2013, os mesmos pesquisadores publicaram outro estudo analisando dados de 539 indivíduos com diverticulose e 1.569 controles, concluindo que “nem a constipação nem uma dieta com baixo teor de fibras foram associadas a um aumento do risco de diverticulose.” Surpreendentemente, participantes com movimentos intestinais menos frequentes (menos de 7 por semana) apresentaram menor probabilidade de desenvolver diverticulose em comparação com aqueles com movimentos intestinais regulares, contradizendo diretamente a crença tradicional sobre constipação e doença diverticular.
Outros estudos conduzidos em diferentes populações chegaram a conclusões semelhantes. Um estudo japonês de 2015 não encontrou associação entre constipação e diverticulose colônica. Da mesma forma, um estudo europeu também publicado em 2015 não identificou correlação entre doença diverticular e constipação.
Estes achados sugerem que a fisiopatologia da doença diverticular é consideravelmente mais complexa do que se pensava anteriormente, envolvendo muitos outros fatores além do simples consumo de fibras e prevenção de constipação intestinal.
Novos entendimentos sobre as causas da doença diverticular
À luz das evidências recentes, novos mecanismos têm sido propostos para explicar as causas da doença diverticular:
Fatores relacionados ao estilo de vida: atividade física, manutenção de peso saudável e adequada hidratação parecem ser fatores protetores independentes do consumo de fibras.
Alterações estruturais da parede intestinal: anormalidades no colágeno e elastina da parede intestinal, possivelmente influenciadas por fatores genéticos, parecem desempenhar um papel importante na formação dos divertículos.
Microbiota intestinal e inflamação: a disbiose (desequilíbrio da microbiota intestinal) e inflamação de baixo grau podem contribuir para o desenvolvimento da doença diverticular e suas complicações.
Metanogênese: o processo de produção de metano por bactérias intestinais tem sido associado à presença de diverticulose. Interessantemente, a celulose (um tipo de fibra alimentar) é fermentada por bactérias produtoras de metano, o que pode contribuir para aumentar a pressão intraluminal em vez de reduzi-la.
Fatores genéticos: estudos de gêmeos e famílias sugerem uma predisposição genética significativa, com estimativas de herdabilidade entre 40% e 53%.
Fatores dietéticos além das fibras: o consumo de carne vermelha, particularmente não processada, tem sido associado ao aumento do risco de diverticulite aguda, enquanto o alto consumo de peixe parece ter efeito protetor.
Consumo de fibras e manejo clínico da doença diverticular
Diverticulose assintomática
Para indivíduos com diverticulose assintomática (pessoas que possuem divertículos, mas não sentem sintomas em relação a eles), as evidências atuais não suportam recomendações generalizadas para aumentar excessivamente o consumo de fibras com o objetivo específico de prevenir complicações. Portanto, uma dieta equilibrada, estilo mediterrânea, seguindo as recomendações gerais para saúde intestinal, parece ser a abordagem mais apropriada.
Doença diverticular sintomática não complicada (DDSNC)
Para pacientes com DDSNC (sintomas abdominais atribuídos à presença de divertículos, mas que não estão inflamados), uma abordagem individualizada é fundamental. Alguns pacientes podem se beneficiar do aumento gradual da ingestão de fibras solúveis, enquanto outros podem experimentar piora dos sintomas, particularmente aqueles com sobreposição com síndrome do intestino irritável.
Uma consideração interessante é a possível aplicação da dieta baixa em FODMAPs (carboidratos fermentáveis) para alguns pacientes com DDSNC. Esta abordagem baseia-se na observação de que os sintomas da DDSNC frequentemente se sobrepõem aos da síndrome do intestino irritável, e que a fermentação excessiva de certos carboidratos pode contribuir para sintomas como distensão abdominal e alterações do hábito intestinal.
Durante e após a diverticulite aguda não complicada
O manejo nutricional da diverticulite aguda não complicada (quando há inflamação dos divertículos, mas sem complicações, como perfurações da parede intestinal, por exemplo) tem evoluído consideravelmente. A tradicional progressão de dieta líquida clara para dieta regular com restrição inicial de fibras ainda é comum na prática clínica. Mas, estudos recentes sugerem que uma abordagem menos restritiva pode ser apropriada para muitos pacientes com diverticulite não complicada tratados ambulatorialmente.
Após a resolução de um episódio de diverticulite, a introdução gradual de fibras continua sendo recomendada por muitos especialistas, embora as evidências que apoiam esta prática para prevenção de recorrências ainda sejam limitadas e controversas. A introdução de fibras deve ser gradual, começando com pequenas quantidades (cerca de 5g adicionais por semana) até atingir a meta individualizada, sempre acompanhada de adequada hidratação. O monitoramento dos sintomas é fundamental para ajustar a quantidade e o tipo de fibra para cada paciente.
Além das fibras
Uma abordagem mais abrangente para a prevenção e manejo da doença diverticular deve considerar múltiplos fatores:
- Padrão alimentar: um padrão alimentar mediterrâneo (rico em azeite de oliva, peixes, frutas, vegetais e baixo em carnes vermelhas) tem sido associado a menor risco de diverticulite.
- Atividade física regular: exercícios físicos regulares parecem reduzir o risco de complicações, independentemente da ingestão de fibras.
- Manutenção de peso saudável: a obesidade tem sido associada a maior risco de complicações da doença diverticular.
- Hidratação adequada: fundamental para o funcionamento intestinal adequado, independentemente do teor de fibras da dieta.
- Gestão do estresse: evidências preliminares sugerem que o estresse crônico pode influenciar a motilidade intestinal e a resposta inflamatória, potencialmente exacerbando sintomas.
Conclusão
A relação entre o consumo de fibras e a doença diverticular é consideravelmente mais complexa do que se pensava anteriormente. A histórica “hipótese da fibra” de Painter e Burkitt, embora tenha dominado o pensamento médico por décadas, tem sido cada vez mais questionada por evidências científicas modernas.
Estudos recentes sugerem que nem a constipação nem uma dieta pobre em fibras são necessariamente fatores de risco para o desenvolvimento de diverticulose, e que o papel das fibras na prevenção de complicações e recorrências pode não ser tão importante quanto se acreditava. Afinal, hoje sabe-se que fisiopatologia da doença diverticular envolve múltiplos fatores, incluindo predisposição genética, alterações estruturais da parede intestinal, microbiota e inflamação.
Para a prática clínica, isso implica uma necessária mudança de paradigma: de recomendações generalizadas para aumento excessivo da ingestão de fibras para uma abordagem mais individualizada e multifatorial. Assim, a avaliação cuidadosa da resposta individual a diferentes intervenções dietéticas, considerando o subtipo da doença e a possível sobreposição com outras condições funcionais do trato gastrointestinal, é fundamental para otimizar o manejo e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
Enfim, se constipação não causa diverticulose e excesso de fibra causa pode aumentar o número de divertículos, parece que é preciso rever urgentemente as condutas que têm sido prescritas. Como em muitas áreas da medicina e nutrição, a ciência continua a evoluir, e é essencial que profissionais de saúde se mantenham atualizados e dispostos a questionar dogmas estabelecidos à luz de novas evidências científicas.
Conheça a quantidade de fibras nos alimentos.
Essas orientações não dispensam avaliação e acompanhamento profissional, pois são simplificadas e não são individualizadas. Procure a orientação de um nutricionista especializado em Gastroenterologia. Nutrição e gastroenterologia: uma união muito importante!
Referências
- Painter NS, Burkitt DP. (1971). “Diverticular disease of the colon: a deficiency disease of Western civilization.” British Medical Journal, 2(5759), 450-454.
- Peery AF, Barrett PR, Park D, et al. (2012). “A high-fiber diet does not protect against asymptomatic diverticulosis.” Gastroenterology, 142(2), 266-272.
- Peery AF, Sandler RS, Ahnen DJ, et al. (2013). “Constipation and a low-fiber diet are not associated with diverticulosis.” Clinical Gastroenterology and Hepatology, 11(12), 1622-1627.
- Strate LL, Liu YL, Syngal S, et al. (2009). “Nut, corn, and popcorn consumption and the incidence of diverticular disease.” Journal of the American Medical Association, 301(8), 907-914.
- Yamada E, Inamori M, Watanabe S, et al. (2015). “Constipation is not associated with colonic diverticula: a multicenter study in Japan.” Neurogastroenterology & Motility, 27(3), 333-338.
- Braunschmid T, Stift A, Mittlböck M, et al. (2015). “Constipation is not associated with diverticular disease – analysis of 976 patients.” International Journal of Surgery, 19, 42-45.
- Aune D, Sen A, Leitzmann MF, et al. (2020). “Dietary fibre intake and the risk of diverticular disease: a systematic review and meta-analysis of prospective studies.” European Journal of Nutrition, 59(2), 421-432.
- Tursi A, Brandimarte G, Elisei W, et al. (2013). “Randomised clinical trial: mesalazine and/or probiotics in maintaining remission of symptomatic uncomplicated diverticular disease – a double-blind, randomised, placebo-controlled study.” Alimentary Pharmacology & Therapeutics, 38(7), 741-751.
- Stollman N, Smalley W, Hirano I. (2015). “American Gastroenterological Association Institute Guideline on the Management of Acute Diverticulitis.” Gastroenterology, 149(7), 1944-1949.
- Lahner E, Bellisario C, Hassan C, et al. (2016). “Probiotics in the Treatment of Diverticular Disease. A Systematic Review.” Journal of Gastrointestinal and Liver Diseases, 25(1), 79-86.
- Carabotti M, Annibale B, Severi C, Lahner E. (2017). “Role of Fiber in Symptomatic Uncomplicated Diverticular Disease: A Systematic Review.” Nutrients, 9(2), 161.
- Eswaran S, Muir J, Chey WD. (2013). “Fiber and functional gastrointestinal disorders.” American Journal of Gastroenterology, 108(5), 718-727.