Você já sentiu aquele desconforto abdominal persistente, acompanhado de alterações nas evacuações, sem uma causa aparente? Pode ser que você esteja enfrentando uma crise de Síndrome do Intestino Irritável (SII) ou com uma condição conhecida como “disbiose intestinal”. Ambas são condições que afetam milhões de pessoas em todo o mundo e, apesar de suas semelhanças, possuem características distintas que merecem atenção.
O que é a Síndrome do Intestino Irritável (SII)?
A Síndrome do Intestino Irritável (SII) é um distúrbio funcional do trato gastrointestinal caracterizado por dor ou desconforto abdominal recorrente, associado a alterações no hábito intestinal. Diferentemente de doenças como a doença de Crohn ou a colite ulcerativa, a SII não causa inflamação visível, ulcerações ou danos permanentes ao intestino.
Estima-se que entre 10% e 15% da população mundial sofra com a SII, tornando-a um dos distúrbios gastrointestinais mais comuns. Curiosamente, ela é mais prevalente em mulheres, afetando-as duas vezes mais que os homens.
Sintomas da SII
Os sintomas da SII podem variar de pessoa para pessoa, mas os critérios diagnósticos incluem:
- Dor ou cólicas abdominais, frequentemente aliviadas após evacuação;
- Sensação de inchaço ou distensão abdominal;
- Alterações na frequência da evacuação e no formato das fezes (diarreia, constipação ou alternância entre ambas);
- Flatulência excessiva.
O que torna a SII particularmente desafiadora é que esses sintomas podem aparecer e desaparecer por períodos, com intensidade variável. Além disso, esses menos sintomas podem estar presentes em outros distúrbios gastrointestinais, tornando o diagnóstico e o tratamento complexos.
Causas da SII
Embora a causa exata da SII permaneça desconhecida, já se sabe que vários fatores parecem contribuir para seu desenvolvimento:
- Alterações na motilidade intestinal: o intestino pode se contrair de forma mais forte e por mais tempo, levando à diarreia, ou mais fracamente, resultando em constipação.
- Hipersensibilidade visceral: pessoas com SII podem ter os nervos intestinais mais sensíveis, experimentando dor em situações que normalmente não causariam desconforto.
- Eixo cérebro-intestino: existe uma comunicação bidirecional entre o cérebro e o intestino, e alterações nesse “eixo” podem influenciar os sintomas da SII.
- Fatores psicológicos: estresse, ansiedade e depressão podem desencadear ou piorar os sintomas.
- Infecções gastrointestinais prévias: algumas pessoas desenvolvem SII após uma gastroenterite severa, condição conhecida como SII pós-infecciosa.
- Alterações na microbiota intestinal: desequilíbrios na população de bactérias intestinais, chamado de disbiose, têm sido cada vez mais associados à SII.
O que é Disbiose Intestinal?
Falando em microbiota, é hora de entender melhor a disbiose intestinal. Nossa microbiota intestinal é composta por trilhões de microrganismos, principalmente bactérias, que desempenham papéis cruciais na digestão, produção de vitaminas, proteção contra patógenos e regulação do sistema imunológico.
Mas, quando a microbiota sofre um desequilíbrio no seu ecossistema, por exemplo, uma redução na diversidade de bactérias benéficas e/ou um aumento de bactérias potencialmente prejudiciais, chamamos essa alteração de disbiose intestinal. Este desequilíbrio pode comprometer a função intestinal em vários aspectos e contribuir para diversos problemas de saúde.
Causas da Disbiose Intestinal
Diversos fatores podem contribuir para o desenvolvimento da disbiose intestinal:
- Uso frequente de antibióticos;
- Uso crônico de prazóis;
- Dieta pobre em fibras e rica em açúcares e gorduras processadas;
- Estresse crônico;
- Consumo excessivo de álcool;
- Exposição a toxinas ambientais, como pesticidas, metais pesados, entre outros;
- Alterações no ritmo circadiano, como distúrbios de sono e de comportamento alimentar;
- Infecções intestinais.
Sintomas da Disbiose Intestinal
Os sintomas da disbiose intestinal podem ser variados e se sobrepor aos da SII, incluindo:
- Desconforto abdominal e inchaço;
- Alterações no hábito intestinal;
- Intolerâncias alimentares;
- Fadiga crônica;
- Problemas de pele como eczema e acne;
- Deficiências nutricionais;
- Infecções recorrentes;
- Alterações de humor e cognição.
Conexão entre SII e Disbiose Intestinal
Pesquisas recentes têm demonstrado uma forte conexão entre a SII e a disbiose intestinal. De fato, muitos especialistas acreditam que a disbiose pode ser um dos mecanismos subjacentes ao desenvolvimento da SII em muitos pacientes.
Afinal, estudos têm mostrado que pessoas com SII frequentemente apresentam alterações na composição da microbiota intestinal quando comparadas a indivíduos saudáveis. Essas alterações podem incluir:
- Redução na diversidade bacteriana;
- Diminuição de bactérias produtoras de butirato (um ácido graxo de cadeia curta com propriedades anti-inflamatórias);
- Aumento de certos grupos bacterianos como Firmicutes e redução de outros, como Bacteroidetes;
- Crescimento bacteriano excessivo no intestino delgado (SIBO).
Esses desequilíbrios podem afetar a função da barreira intestinal, aumentar a inflamação local, alterar a motilidade e aumentar a sensibilidade visceral – todos fatores implicados na SII.
A disbiose pode contribuir para os sintomas da SII através de vários mecanismos, incluindo alteração da permeabilidade intestinal, produção excessiva de gases, ativação do sistema imune intestinal e interferência na comunicação entre o intestino e o cérebro. Isso explica por que algumas abordagens terapêuticas focadas na microbiota, como o uso de suplementos e dietas específicas, podem ajudar a aliviar os sintomas em pacientes com SII.
No entanto, é importante ressaltar que a relação entre SII e disbiose ainda não está completamente esclarecida, pois a SII é uma condição multifatorial e a disbiose provavelmente representa apenas um dos vários fatores envolvidos.
Diagnóstico
Diagnóstico da SII
Por ser um distúrbio de funcionamento intestinal, o diagnóstico da SII é principalmente clínico, baseado nos critérios de Roma IV. Esses critérios incluem: dor abdominal recorrente associada a alterações nas evacuações e formato das fezes, sem evidência de anormalidades estruturais no intestino. Por isso, exames complementares são geralmente solicitados para excluir outras condições orgânicas, como doença celíaca, doença inflamatória intestinal e câncer colorretal.
Diagnóstico da Disbiose
Já o diagnóstico da disbiose é mais desafiador. Algumas abordagens incluem:
- Avaliação dos sinais e sintomas na anamnese;
- Análise da composição da microbiota por sequenciamento genético – o que ainda é questionado por alguns pesquisadores, visto que a microbiota presente nas fezes não necessariamente representa a microbiota residente na luz intestinal;
- Testes respiratórios para SIBO (supercrescimento bacteriano no intestino delgado) – ainda questionado também devido às grandes chances de resultados falsos negativos;
- Análise de metabólitos bacterianos nas fezes – cujos muitos deles ainda não estão disponíveis para a prática clínica e, sim, apenas para pesquisa;
- Avaliação de marcadores inflamatórios e de permeabilidade intestinal, embora muitos deles não sejam exames específicos ou validados para disbiose ou disponíveis para a prática clínica.
Tratamento e Manejo
Abordagens para SII
O tratamento da SII geralmente envolve uma combinação de abordagens:
- Modificações na dieta: com dietas como a low FODMAP, que limita certos carboidratos fermentáveis, alimentação adequada em fibras e rica em polifenóis;
- Manejo do estresse: técnicas de relaxamento, mindfulness, ioga, meditação, terapia cognitivo-comportamental;
- Uso de Medicamentos: dependendo da origem dos sintomas predominantes, podem ser prescritos antiespasmódicos, laxantes, antidiarreicos, antidepressivos em baixas doses ou moduladores da serotonina;
- Uso de Suplementos: pós bióticos e fibras fodmap friendly têm mostrado benefícios para reestabelecer a saúde da microbiota e da barreira intestinal;
- Ação no manejo de sintomas: chá de hortelã-pimenta para alívio dos sintomas, bolsa de água quente, chás digestivos.
- Rotina saudável: incluir a prática de atividade física regular e cuidados com higiene do sono são importantes para um bom manejo dos sintomas.
Abordagens para Disbiose
O tratamento da disbiose visa restaurar o equilíbrio da microbiota:
- Dieta rica em fibras, polifenóis e prebióticos: alimentos como chicória, alho, cebola, banana verde, leguminosas e vegetais variados alimentam as bactérias benéficas;
- Dieta rica em alimentos fermentados: como chucrute, kefir, kombucha e kimchi ajudam a restabelecer a microbiota saudável;
- Redução de açúcares e alimentos processados: estes favorecem o crescimento de bactérias prejudiciais;
- Tratamento medicamentoso antimicrobiano: em casos específicos, como de SIBO, antibióticos podem ser indicados;
- Uso de suplementos: suplementos que contribuem para uma boa microbiota intestinal e ativos com ação antimicrobiana seletiva ajudam a corrigir o desequilíbrio intestinal;
- Manejo do estresse: o estresse afeta negativamente a composição da microbiota.
- Rotina saudável: além dos cuidados anteriores, inserir a prática de atividade física regular e cuidados com a higiene do sono.
SII ou Disbiose Intestinal? As Principais Diferenças
Natureza da condição
A SII é um distúrbio funcional com diagnóstico clínico específico, enquanto a disbiose é um estado de desequilíbrio da microbiota que pode ocorrer independentemente da presença ou não da S
Abrangência dos Sintomas
Os sintomas são parecidos, no entanto, para diagnóstico de SII deve haver a presença de dor abdominal que alivia após a defecação, o que não é um sinal obrigatoriamente presente na disbiose. Além disso, a disbiose pode causar muito mais sintomas extra-intestinais, como dores de cabeça, dores articulares, névoa mental, deficiências nutricionais e intolerância a alimentos que não necessariamente são os fodmaps.
Diagnóstico
A SII é diagnosticada clinicamente com base nos Critérios de Roma IV, enquanto a disbiose pode ser identificada através de sinais e sintomas, de exames específicos que analisam a composição da microbiota intestinal, como análises de fezes, teste de hidrogênio expirado ou sequenciamento genético bacteriano.
Relação causal
Enquanto a disbiose pode ser um dos fatores contribuintes para a SII, nem todos os pacientes com SII apresentam disbiose significativa, e nem todos com disbiose desenvolvem SII.
Abordagem terapêutica
Embora haja sobreposição nas estratégias de tratamento, a SII requer uma dieta específica, chamada low fodmap, e pode necessitar de medicamentos para o manejo de sintomas específicos. No entanto, o tratamento da disbiose foca mais diretamente na restauração do equilíbrio da microbiota intestinal através da melhora da qualidade da alimentação, da qualidade de vida e uso de suplementos.
A Síndrome do Intestino Irritável e a disbiose intestinal são condições complexas, que estão interligadas e afetam significativamente a qualidade de vida. Por isso, saber diferenciá-las é fundamental para desenvolver estratégias de tratamento mais eficazes.
Se você sofre com sintomas gastrointestinais persistentes, procure orientação profissional de quem entenda do assunto. Um diagnóstico preciso é o primeiro passo para um tratamento adequado e para a recuperação do equilíbrio intestinal e bem-estar geral.
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