Nutricionista Adriana Lauffer

Hipocloridria

hipoloridria

A digestão adequada é fundamental para nossa saúde geral, pois garante a absorção correta dos nutrientes essenciais para o funcionamento do organismo. No entanto, algumas pessoas sofrem com a hipocloridria, uma condição frequentemente negligenciada que pode comprometer significativamente esse processo. Vamos, portanto, explorar este tema em profundidade para compreender melhor suas implicações e possíveis abordagens terapêuticas.

O que é hipocloridria

A hipocloridria refere-se à produção insuficiente de ácido clorídrico (HCl) pelo estômago. O ácido clorídrico, principal componente do suco gástrico, desempenha funções essenciais no processo digestivo. Primeiramente, ele ativa a pepsina, enzima responsável pela quebra inicial das proteínas. Além disso, o ambiente ácido criado pelo HCl é crucial para a eliminação de patógenos potencialmente nocivos ingeridos com os alimentos. Consequentemente, a baixa produção desse ácido compromete tanto a digestão quanto os mecanismos de defesa naturais do organismo.

A diferença entre hipocloridria e acloridria merece esclarecimento. Enquanto a hipocloridria caracteriza-se pela produção reduzida de ácido clorídrico, a acloridria representa a ausência completa dessa secreção. Ambas as condições, no entanto, podem resultar em sintomas semelhantes e complicações a longo prazo quando não tratadas adequadamente, embora a acloridria cause sintomas mais intensos e complicações mais cedo do que a hipocloridria.

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Sinais e sintomas de hipocloridria

A hipocloridria frequentemente manifesta-se com sintomas que podem ser facilmente confundidos com outras condições digestivas. Os pacientes frequentemente experimentam sensação de plenitude logo após as refeições, mesmo com pequenas quantidades de alimento. Além disso, azia e refluxo ácido paradoxalmente ocorrem, pois o esvaziamento gástrico retardado pode aumentar a pressão no estômago, forçando o conteúdo parcialmente digerido de volta ao esôfago.

A má digestão proteica resultante da hipocloridria comumente causa distensão abdominal, flatulência excessiva e desconforto intestinal. Adicionalmente, muitos pacientes relatam episódios frequentes de náuseas após as refeições, especialmente aquelas ricas em proteínas. A sensação persistente de mal-estar gástrico, mesmo horas após a alimentação, também constitui queixa comum.

Sintomas sistêmicos, por sua vez, podem manifestar-se devido à má absorção de nutrientes. Fadiga crônica, fraqueza inexplicada e unhas quebradiças frequentemente resultam da deficiência de ferro, cuja absorção é prejudicada pelo pH gástrico elevado. Similarmente, a deficiência de vitamina B12, cuja absorção depende do fator intrínseco produzido em meio ácido, pode provocar formigamentos, dificuldades cognitivas, problemas neurológicos e anemia perniciosa.

Como saber se eu tenho hipocloridia

Existem 4 perguntas básicas que devem ser feitas ao tentar identificar a hicloporidria:

  • Você sente eructação (arrotos)?
  • Você sente azia (queimação)?
  • Você sente dor ou desconforto gástrico após comer?
  • Sua digestão é difícil quando você come maiores quantidades de carne de gado?

Se você respondeu sim a essas perguntas, você pode ser um candidato à hipocloridria.

Causas e fatores de risco da hipocloridria

Diversas condições podem desencadear ou contribuir para o desenvolvimento da hipocloridria. A gastrite atrófica, caracterizada pela inflamação crônica da mucosa gástrica, frequentemente resulta em degeneração das células parietais responsáveis pela produção de ácido clorídrico.

A infecção crônica por Helicobacter pylori, particularmente quando evolui para gastrite atrófica do corpo gástrico, pode comprometer as células parietais e reduzir a secreção ácida. No entanto, nas fases iniciais da infecção, o efeito é o oposto, com aumento da secreção ácida devido à inflamação predominantemente antral e redução da somatostatina. Apenas em infecções de longa duração, quando ocorre atrofia gástrica, é que observamos o comprometimento das células parietais e a consequente redução da secreção ácida.

Além disso, o envelhecimento natural também contribui significativamente para esta condição. Com o avanço da idade, aproximadamente 30% das pessoas acima de 65 anos apresentam algum grau de hipocloridria devido à redução natural na produção de ácido gástrico. Paralelamente, condições autoimunes como a anemia perniciosa, na qual o sistema imunológico ataca as células parietais, podem resultar em hipocloridria severa ou mesmo acloridria.

O uso prolongado de medicamentos como inibidores de bomba de prótons (omeprazol, pantoprazol) e antagonistas de receptores H2 (ranitidina, famotidina) representa importante fator iatrogênico. Estes medicamentos, embora eficazes no tratamento de condições como úlcera péptica e refluxo gastroesofágico, podem induzir hipocloridria quando utilizados continuamente por períodos prolongados.

Fatores nutricionais igualmente influenciam a produção de ácido gástrico. A deficiência de zinco, por exemplo, compromete a função das células parietais, enquanto o estresse crônico altera os padrões de secreção gástrica através do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal. Por fim, cirurgias bariátricas, especialmente aquelas que removem porções do estômago, podem reduzir drasticamente a capacidade de produção ácida.

Exame para hipocloridria

O diagnóstico preciso da hipocloridria representa um desafio clínico, pois muitos dos sintomas sobrepõem-se a outras condições digestivas. O teste de Heidelberg, considerado padrão-ouro para avaliação da acidez gástrica, utiliza uma cápsula que mede o pH enquanto percorre o trato digestivo, transmitindo os dados para um receptor externo. Esta metodologia permite a avaliação precisa da secreção ácida em diferentes regiões do estômago, mas não existe no Brasil.

Alternativamente, o teste de desafio com bicarbonato de sódio constitui uma opção mais acessível. Nesta abordagem, o paciente ingere uma solução de bicarbonato de sódio em jejum, o qual, em contato com o ácido gástrico, produz dióxido de carbono. A ausência de eructação nos minutos subsequentes pode indicar produção ácida insuficiente. Entretanto, este método apresenta limitações significativas quanto à precisão e especificidade.

Exames laboratoriais complementares auxiliam na identificação de consequências da hipocloridria. A dosagem sérica de pepsinogênio I, precursor da pepsina, encontra-se tipicamente reduzida nesta condição. Adicionalmente, níveis baixos de vitamina B12, ferritina e transferrina podem sugerir má absorção decorrente da acidez gástrica inadequada. A endoscopia digestiva alta, por sua vez, permite a visualização direta da mucosa gástrica e a coleta de material para análise histopatológica, possibilitando a identificação de atrofia gástrica ou infecção por H. pylori.

pH metria para hipocloridria

A pHmetria gástrica constitui um método diagnóstico valioso para avaliar a hipocloridria, utilizando um cateter de canal duplo ou múltiplos canais com sensores posicionados no estômago que medem diretamente o pH intragástrico durante um período prolongado. Esta modalidade do exame permite quantificar com precisão a produção ácida basal e após estímulos, estabelecendo parâmetros objetivos para diagnóstico diferencial entre acidez normal (pH gástrico entre 1,5-3,5), hipocloridria (pH entre 3,5-5,0) e acloridria (pH acima de 5,0).

A principal vantagem deste método, em comparação com testes indiretos como o de bicarbonato, reside na sua capacidade de fornecer dados quantitativos sobre a função secretora gástrica, possibilitando avaliar também a resposta a estímulos e a capacidade de reacidificação após neutralização, aspectos fundamentais para caracterizar o grau de comprometimento das células parietais. Embora seja um procedimento mais invasivo que testes indiretos, a pHmetria gástrica apresenta maior sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de hipocloridria, oferecendo ao clínico informações cruciais para direcionar o tratamento adequado.

Consequências a longo prazo da hipocloridria

A hipocloridria não tratada pode resultar em complicações significativas ao longo do tempo. A má absorção de nutrientes representa uma das consequências mais imediatas, afetando particularmente minerais como ferro, cálcio, magnésio e zinco, além de vitaminas B12 e D. Consequentemente, deficiências nutricionais crônicas podem manifestar-se como anemia, osteoporose, comprometimento imunológico e desordens neurológicas.

O crescimento bacteriano excessivo no intestino delgado (SIBO) frequentemente desenvolve-se em pacientes com hipocloridria, pois a barreira ácida estomacal enfraquecida permite que bactérias normalmente eliminadas pelo ácido gástrico colonizem o intestino delgado. Esta disbiose intestinal pode exacerbar problemas digestivos e contribuir para a inflamação sistêmica. Paralelamente, o risco aumentado de infecções entéricas ocorre devido à neutralização inadequada de patógenos alimentares.

A longo prazo, a hipocloridria crônica associa-se ao maior risco de desenvolvimento de neoplasias gástricas. A gastrite atrófica e a metaplasia intestinal, frequentemente associadas à hipocloridria prolongada, constituem lesões pré-malignas reconhecidas. Adicionalmente, a má digestão proteica pode resultar em sensibilidades alimentares e respostas imunológicas aberrantes a proteínas parcialmente digeridas, manifestando-se como alergias ou intolerâncias alimentares previamente inexistentes.

Tratamento para hipoloridria

O tratamento da hipocloridria concentra-se tanto na correção da acidez gástrica quanto no manejo das condições subjacentes. A suplementação com ácido clorídrico betaína representa uma opção terapêutica comum, fornecendo acidez exógena durante as refeições. Entretanto, esta abordagem deve ser implementada sob supervisão médica estrita, iniciando-se com doses baixas que são gradualmente ajustadas conforme a tolerância individual.

Estratégias nutricionais desempenham papel fundamental no manejo da hipocloridria. O consumo de alimentos fermentados como chucrute, kimchi e kombucha fornece ácidos orgânicos que podem complementar a acidez gástrica deficiente. Adicionalmente, o consumo de alimentos amargos como rúcula, alcachofra e dente-de-leão estimula naturalmente a secreção gástrica através da ativação dos receptores gustativos.

A suplementação de nutrientes específicos frequentemente prejudicados pela hipocloridria torna-se necessária. Formas biodisponíveis de ferro (como bisglicinato ferroso), vitamina B12 (preferencialmente em formas sublinguais ou injetáveis) e zinco contribuem para reverter deficiências existentes. Paralelamente, enzimas digestivas suplementares, particularmente proteases, lipases e amilases, auxiliam na digestão apropriada dos macronutrientes, compensando parcialmente a deficiência ácida.

O tratamento das condições subjacentes constitui etapa crucial. A erradicação da infecção por H. pylori, quando presente, pode permitir a recuperação parcial da função das células parietais. Da mesma forma, a reavaliação do uso crônico de medicamentos supressores de ácido, sob orientação médica, pode ser necessária, implementando-se estratégias de redução gradual da dosagem ou uso intermitente quando apropriado.

Conclusão

A hipocloridria representa uma condição frequentemente negligenciada, porém com potencial para causar significativo impacto na saúde digestiva e sistêmica. O reconhecimento dos sinais e sintomas, aliado à investigação apropriada, permite a identificação precoce e o estabelecimento de estratégias terapêuticas eficazes. Uma abordagem integrada, combinando suplementação ácida, intervenções nutricionais e manejo das condições subjacentes, oferece os melhores resultados para pacientes afetados por esta condição.

O desenvolvimento de métodos diagnósticos mais acessíveis e precisos permanece como necessidade na área, possibilitando a identificação mais ampla de indivíduos afetados. Enquanto isso, a conscientização sobre esta condição entre profissionais de saúde e o público geral representa passo importante para garantir diagnóstico oportuno e intervenção adequada, prevenindo as complicações a longo prazo associadas à hipocloridria não tratada.

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