Nutricionista Adriana Lauffer

Consequências da infecção por Helicobacter pylori

Consequências da infecção por helicobacter pylori

A Helicobacter pylori (H. pylori) coloniza o estômago humano há pelo menos 58.000 anos, tendo evoluído juntamente com nossos ancestrais. Atualmente, esta bactéria gram-negativa, microaerofílica e helicoidal infecta aproximadamente 4,4 bilhões de pessoas mundialmente, representando mais da metade da população global.

Embora a maioria das pessoas infectadas permaneça assintomática durante toda a vida, a H. pylori pode desencadear uma cascata de eventos patológicos em determinadas pessoas, levando a condições gastrointestinais graves e potencialmente fatais. Sendo assim, este post aborda as principais consequências clínicas da infecção por H. pylori.

Fisiopatologia da infecção por H. pylori

A H. pylori possui notável capacidade de sobreviver no ambiente hostil do estômago. Utilizando sua urease para neutralizar o ácido gástrico e flagelos para penetrar no muco protetor, a bactéria estabelece uma infecção persistente na mucosa gástrica. Após a colonização, desenvolve-se uma complexa interação entre o patógeno e o hospedeiro, influenciada por: 1) fatores de virulência da bactéria, que determina o potencial patogênico da infecção; 2) resposta imune do hospedeiro e 3) predisposição genética do hospedeiro, que vão influenciar o curso clínico e a gravidade da infecção. A interação entre esses 3 fatores determinam se a infecção permanecerá assintomática ou progredirá para manifestações clínicas mais graves.

Consequências da infecção por Helicobacter pylori

Gastrite crônica e H. pylori

A infecção por H. pylori invariavelmente causa gastrite crônica, caracterizada histologicamente por infiltração de neutrófilos e linfócitos na mucosa gástrica. Esta inflamação pode evoluir para atrofia gástrica, metaplasia intestinal, displasia e, finalmente, adenocarcinoma gástrico. Aproximadamente 90% dos infectados desenvolvem gastrite não-atrófica, enquanto 10% progridem para gastrite atrófica multifocal, aumentando significativamente o risco de câncer gástrico.

Úlceras pépticas e H. pylori

A H. pylori representa o principal fator etiológico para úlceras pépticas, sendo responsável por aproximadamente 70% das úlceras gástricas e 85-95% das úlceras duodenais. A erradicação da H. pylori reduz significativamente a taxa de recorrência de úlceras de 60-90% para menos de 10% em um ano, evidenciando seu papel causal.

O fenótipo ulcerativo da infecção, presente em 15-20% dos infectados, caracteriza-se por:

  • Acentuada inflamação na região antral do estômago
  • Hipergastrinemia e consequente hipersecreção ácida
  • Danos à barreira mucosa protetora, facilitando a retrodifusão de ácido
  • Alterações na motilidade gastroduodenal

Adenocarcinoma gástrico e H. pylori

O câncer gástrico representa a quinta neoplasia maligna mais comum e a terceira principal causa de mortalidade por câncer mundialmente, com aproximadamente 783.000 óbitos anuais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a H. pylori como carcinógeno do grupo 1 desde 1994, reconhecendo sua causalidade no desenvolvimento de adenocarcinoma gástrico.

O fenótipo de câncer gástrico da infecção, presente em aproximadamente 1% dos infectados, caracteriza-se por:

  • Gastrite predominante no corpo gástrico
  • Atrofia progressiva da mucosa com perda de células parietais
  • Hipocloridria ou acloridria
  • Metaplasia intestinal e eventual displasia

Estudos epidemiológicos demonstram que a infecção por H. pylori aumenta em 2-8 vezes o risco de câncer gástrico, dependendo da virulência da cepa e de fatores do hospedeiro. Particularmente, cepas cagA-positivas elevam este risco em até 28 vezes.

Linfoma MALT Gástrico e H. pylori

O linfoma do tecido linfoide associado à mucosa (MALT) representa aproximadamente 5% das neoplasias gástricas primárias. A associação entre H. pylori e este tipo de linfoma é particularmente notável, com evidências de causalidade direta:

  • Aproximadamente 90% dos pacientes com linfoma MALT gástrico são positivos para H. pylori
  • A erradicação da bactéria resulta em remissão completa em 60-80% dos casos de linfoma MALT de baixo grau em estágios iniciais
  • Há regressão documentada de células B monoclonais após a eliminação da H. pylori

Este fenômeno exemplifica um caso raro em que a eliminação de um agente infeccioso pode reverter um processo neoplásico estabelecido.

Outras doenças que podem estar associadas à H. pylori

Evidências crescentes sugerem que a infecção por H. pylori pode ter implicações além do trato gastrointestinal, embora com níveis variáveis de comprovação científica:

Associações com evidências substanciais

Púrpura trombocitopênica imune: metanálises demonstram resposta plaquetária completa ou parcial em 50-65% dos pacientes após erradicação da H. pylori, sugerindo autoimunidade mediada por mimetismo molecular.

Anemia ferropriva inexplicada: a H. pylori contribui para anemia através de múltiplos mecanismos, incluindo sangramento microscópico, alteração do pH gástrico (afetando a absorção de ferro) e sequestro de ferro pela própria bactéria. Estudos demonstram melhora dos parâmetros hematológicos após erradicação em 75% dos casos.

Deficiência de vitamina B12: a gastrite atrófica induzida por H. pylori reduz a secreção de ácido gástrico e fator intrínseco, prejudicando a absorção de vitamina B12. A erradicação pode melhorar os níveis séricos desta vitamina em 40-60% dos pacientes deficientes.

Associações em investigação

  • Doenças neurodegenerativas: estudos caso-controle sugerem associação entre infecção por H. pylori e maior risco de doença de Alzheimer (OR: 1,7-2,3) e doença de Parkinson (OR: 1,5-2,0), possivelmente mediada por inflamação sistêmica crônica e neuroinflamação.
  • Síndrome metabólica: metanálises recentes indicam maior prevalência de H. pylori em pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (OR: 1,69) e resistência à insulina (OR: 1,38), sugerindo potencial papel patogênico através de alterações em adipocinas e citocinas inflamatórias.
  • Doenças dermatológicas: evidências preliminares apontam para benefícios da erradicação em condições como urticária crônica (resposta em 30-55% dos casos), rosácea (melhora em 75% dos pacientes) e psoríase.
  • Doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA): estudos observacionais sugerem associação positiva entre H. pylori e DHGNA (OR: 1,21-1,85), possivelmente mediada por alterações na permeabilidade intestinal e consequente endotoxemia.

Embora estas associações sejam promissoras, ainda são necessários estudos prospectivos randomizados para estabelecer causalidade definitiva e determinar o impacto da erradicação na progressão destas condições.

Conclusão

A infecção por H. pylori representa um paradigma fascinante na medicina moderna: um patógeno ancestral que coevoluiu com os humanos, causando desde infecções assintomáticas até condições potencialmente fatais. O reconhecimento de seu papel em diversas patologias gastrointestinais revolucionou o manejo dessas condições, particularmente das úlceras pépticas e do câncer gástrico.

Contudo, os desafios crescentes relacionados à resistência antimicrobiana e as consequências de longo prazo da terapia de erradicação exigem abordagens mais sofisticadas e individualizadas. Paralelamente, as evidências emergentes sobre associações com doenças extragástricas expandem nossa compreensão sobre o impacto sistêmico desta infecção.

O futuro da pesquisa sobre H. pylori provavelmente concentrar-se-á no desenvolvimento de terapias mais eficazes e menos disruptivas, identificação precoce de pacientes de alto risco e melhor compreensão das complexas interações entre esta bactéria, o hospedeiro humano e o microbioma gastrintestinal. Essa evolução no conhecimento permitirá estratégias mais precisas para prevenir e tratar as diversas consequências clínicas desta infecção tão prevalente.

Veja outros posts sobre o assunto H pylori e nutrição.

Que saber mais sobre o assunto?

Caso queira saber mais detalhes científicos sobre nutrientes e compostos bioativos que podem auxiliar no seu tratamento para H. pylori, conheça esse material que eu elaborei. Ele é um guia alimentar voltado para pacientes.

guia alimentar helicobacter pylori

Referências

Abdel-Razik, A., Mousa, N., Shabana, W., et al. (2018). Helicobacter pylori as an initiating factor of complications in patients with NAFLD. European Journal of Gastroenterology & Hepatology, 30(9), 1060-1065.

Bray, F., Ferlay, J., Soerjomataram, I., et al. (2018). Global cancer statistics 2018: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA: A Cancer Journal for Clinicians, 68(6), 394-424.

Chey, W. D., Leontiadis, G. I., Howden, C. W., et al. (2017). ACG Clinical Guideline: Treatment of Helicobacter pylori Infection. American Journal of Gastroenterology, 112(2), 212-239.

Correa, P., & Piazuelo, M. B. (2012). The gastric precancerous cascade. Journal of Digestive Diseases, 13(1), 2-9.

Cosme, A., Montes, M., Ibarra, B., et al. (2016). Antimicrobial susceptibility testing before first-line treatment for Helicobacter pylori infection in patients with failure of previous treatment. Journal of Clinical Gastroenterology, 50(9), 769-773.

Doulberis, M., Kotronis, G., Thomann, R., et al. (2018). Review: Impact of Helicobacter pylori on Alzheimer’s disease: What do we know so far? Helicobacter, 23(1), e12454.

El-Omar, E. M., Ng, M. T., & Hold, G. L. (2008). Polymorphisms in Toll-like receptor genes and risk of cancer. Oncogene, 27(2), 244-252.

Gravina, A. G., Federico, A., Ruocco, E., et al. (2018). Helicobacter pylori infection but not small intestinal bacterial overgrowth may play a pathogenic role in rosacea. United European Gastroenterology Journal, 6(3), 412-418.

Hardbower, D. M., Peek, R. M., & Wilson, K. T. (2014). At the Bench: Helicobacter pylori, dysregulated host responses, DNA damage, and gastric cancer. Journal of Leukocyte Biology, 96(2), 201-212.

Hooi, J. K. Y., Lai, W. Y., Ng, W. K., et al. (2017). Global Prevalence of Helicobacter pylori Infection: Systematic Review and Meta-Analysis. Gastroenterology, 153(2), 420-429.

Huang, J. Q., Zheng, G. F., Sumanac, K., et al. (2003). Meta-analysis of the relationship between cagA seropositivity and gastric cancer. Gastroenterology, 125(6), 1636-1644.

Hudak, L., Jaraisy, A., Haj, S., et al. (2017). An updated systematic review and meta-analysis on the association between Helicobacter pylori infection and iron deficiency anemia. Helicobacter, 22(1), e12330.

International Agency for Research on Cancer (IARC). (1994). Schistosomes, liver flukes and Helicobacter pylori. IARC Monographs on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans, 61, 1-241.

Jakobsson, H. E., Jernberg, C., Andersson, A. F., et al. (2010). Short-term antibiotic treatment has differing long-term impacts on the human throat and gut microbiome. PLoS One, 5(3), e9836.

Karimi, P., Islami, F., Anandasabapathy, S., et al. (2014). Gastric cancer: descriptive epidemiology, risk factors, screening, and prevention. Cancer Epidemiology, Biomarkers & Prevention, 23(5), 700-713.

Kusters, J. G., van Vliet, A. H., & Kuipers, E. J. (2006). Pathogenesis of Helicobacter pylori infection. Clinical Microbiology Reviews, 19(3), 449-490.

Leodolter, A., Kulig, M., Brasch, H., et al. (2001). A meta-analysis comparing eradication, healing and relapse rates in patients with Helicobacter pylori-associated gastric or duodenal ulcer. Alimentary Pharmacology & Therapeutics, 15(12), 1949-1958.

Linz, B., Balloux, F., Moodley, Y., et al. (2007). An African origin for the intimate association between humans and Helicobacter pylori. Nature, 445(7130), 915-918.

Liou, J. M., Chen, C. C., Chang, C. M., et al. (2019). Long-term changes of gut microbiota, antibiotic resistance, and metabolic parameters after Helicobacter pylori eradication: a multicentre, open-label, randomised trial. Lancet Infectious Diseases, 19(10), 1109-1120.

Malfertheiner, P., Megraud, F., O’Morain, C. A., et al. (2017). Management of Helicobacter pylori infection—the Maastricht V/Florence Consensus Report. Gut, 66(1), 6-30.

McFarland, L. V., Huang, Y., Wang, L., et al. (2016). Systematic review and meta-analysis: Multi-strain probiotics as adjunct therapy for Helicobacter pylori eradication and prevention of adverse events. United European Gastroenterology Journal, 4(4), 546-561.

Plummer, M., Franceschi, S., Vignat, J., et al. (2015). Global burden of gastric cancer attributable to Helicobacter pylori. International Journal of Cancer, 136(2), 487-490.

Rugge, M., Pennelli, G., Pilozzi, E., et al. (2011). Gastritis: the histology report. Digestive and Liver Disease, 43(Suppl 4), S373-S384.

Salama, N. R., Hartung, M. L., & Müller, A. (2013). Life in the human stomach: persistence strategies of the bacterial pathogen Helicobacter pylori. Nature Reviews Microbiology, 11(6), 385-399.

Savoldi, A., Carrara, E., Graham, D. Y., et al. (2018). Prevalence of antibiotic resistance in Helicobacter pylori: a systematic review and meta-analysis in World Health Organization regions. Gastroenterology, 155(5), 1372-1382.

Serin, E., Gümürdülü, Y., Ozer, B., et al. (2002). Impact of Helicobacter pylori on the development of vitamin B12 deficiency in the absence of gastric atrophy. Helicobacter, 7(6), 337-341.

Stasi, R., Sarpatwari, A., Segal, J. B., et al. (2009). Effects of eradication of Helicobacter pylori infection in patients with immune thrombocytopenic purpura: a systematic review. Blood, 113(6), 1231-1240.

Sugano, K., Tack, J., Kuipers, E. J., et al. (2015). Kyoto global consensus report on Helicobacter pylori gastritis. Gut, 64(9), 1353-1367.

Sugimoto, M., Furuta, T., Shirai, N., et al. (2009). Evidence that the degree and duration of acid suppression are related to Helicobacter pylori eradication by triple therapy. Helicobacter, 14(2), 119-123.

Thung, I., Aramin, H., Vavinskaya, V., et al. (2016). Review article: the global emergence of Helicobacter pylori antibiotic resistance. Alimentary Pharmacology & Therapeutics, 43(4), 514-533.

Upala, S., Jaruvongvanich, V., Riangwiwat, T., et al. (2016). Association between Helicobacter pylori infection and insulin resistance: a meta-analysis. Digestive and Liver Disease, 48(11), 1345-1351.

Vale, F. F., & Vitor, J. M. (2010). Transmission pathway of Helicobacter pylori: does food play a role in rural and urban areas? International Journal of Food Microbiology, 138(1-2), 1-12.

Wotherspoon, A. C., Doglioni, C., Diss, T. C., et al. (1993). Regression of primary low-grade B-cell gastric lymphoma of mucosa-associated lymphoid tissue type after eradication of Helicobacter pylori. The Lancet, 342(8871), 575-577.

Wroblewski, L. E., Peek, R. M., & Wilson, K. T. (2010). Helicobacter pylori and gastric cancer: factors that modulate disease risk. Clinical Microbiology Reviews, 23(4), 713-739.

Yamaoka, Y. (2010). Mechanisms of disease: Helicobacter pylori virulence factors. Nature Reviews Gastroenterology & Hepatology, 7(11), 629-641.

Zeng, M., Mao, X. H., Li, J. X., et al. (2015). Efficacy, safety, and immunogenicity of an oral recombinant Helicobacter pylori vaccine in children in China: a randomised, double-blind, placebo-controlled, phase 3 trial. The Lancet, 386(10002), 1457-1464.

Zullo, A., Hassan, C., Ridola, L., et al. (2014). Gastric MALT lymphoma: old and new insights. Annals of Gastroenterology, 27(1), 27-33.