Nutricionista Adriana Lauffer

Alterações anatômicas e funcionais que causam constipação

Alteracoes-anatomicas-e-funcionais-que-causam-constipacao

A constipação intestinal é um problema que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, comprometendo significativamente a qualidade de vida e gerando custos substanciais para os sistemas de saúde. De fato, estima-se que este distúrbio afete entre 12% e 19% da população mundial, com prevalência ainda maior em idosos e mulheres.

Contudo, a constipação não é uma doença em si, mas sim um sintoma que pode resultar de diversas alterações anatômicas e funcionais do trato gastrointestinal. Neste artigo, vamos conhecer as principais alterações estruturais e funcionais que causam constipação e os exames diagnósticos essenciais para identificá-las corretamente.

Alterações funcionais

Defecação dissinérgica

Uma das causas mais comuns de constipação funcional é a defecação dissinérgica, também conhecida como anismo ou dissinergismo do assoalho pélvico. Esta condição caracteriza-se pela incoordenação entre os músculos abdominais e os do assoalho pélvico durante a evacuação.

Em uma evacuação normal, quando fazemos força, os músculos abdominais se contraem enquanto o esfíncter anal e o músculo puborretal relaxam simultaneamente. No entanto, em pessoas com defecação dissinérgica, ocorre uma contração paradoxal ou inadequada relaxação desses músculos pélvicos, o que impede a saída das fezes.

Esta disfunção afeta até 50% dos pacientes com constipação crônica e é considerada um comportamento adquirido, possivelmente originado de experiências traumáticas com evacuações dolorosas, treinamento inadequado do uso do banheiro, ou até mesmo fatores psicológicos como ansiedade e estresse.

Trânsito intestinal lento

Outra importante alteração funcional é a constipação por trânsito lento, caracterizada por uma redução na motilidade colônica que retarda o movimento das fezes através do intestino grosso. Consequentemente, as fezes permanecem no cólon por mais tempo, resultando em maior absorção de água e formação de fezes endurecidas.

Esta condição pode resultar de disfunções nos nervos e músculos do cólon, como ocorre na neuropatia autonômica diabética, na doença de Parkinson ou em alterações na produção de neurotransmissores que controlam a motilidade intestinal. Além disso, o uso prolongado de certos medicamentos, como opioides e anticolinérgicos, também pode contribuir para o trânsito intestinal lento.

Curiosamente, a constipação por trânsito lento e a defecação dissinérgica frequentemente coexistem, complicando ainda mais o quadro clínico e seu manejo.

Inércia colônica

A inércia colônica representa um subtipo importante de constipação por trânsito lento, caracterizada por uma disfunção significativa na atividade motora propulsiva do cólon. Esta condição envolve alterações na densidade das células intersticiais de Cajal (as células marcapasso do intestino), redução de neurotransmissores excitatórios como a substância P e alterações na transmissão colinérgica, resultando em contrações peristálticas ineficazes.

Estudos com manometria colônica de alta resolução têm demonstrado padrões distintos de propagação retrógrada e diminuição nas contrações de alta amplitude em pacientes com inércia colônica quando comparados àqueles com outros tipos de constipação.

Alterações anatômicas

Retocele

A retocele é uma herniação da parede anterior do reto para dentro da vagina nas mulheres, criando uma espécie de bolsa onde as fezes podem ficar retidas. Isso acontece devido ao enfraquecimento do septo retovaginal, frequentemente resultante de traumas do parto, cirurgias pélvicas ou esforço crônico durante a evacuação.

Retoceles pequenas (menores que 2 cm) raramente causam sintomas, porém retoceles moderadas (2-4 cm) ou grandes (maiores que 4 cm) podem dificultar significativamente a evacuação. Muitas pacientes relatam a necessidade de pressionar a vagina com os dedos para auxiliar na evacuação, um sintoma característico chamado “digitação vaginal”.

Prolapso retal e intussuscepção

O prolapso retal ocorre quando a parede do reto se projeta através do ânus (prolapso externo) ou permanece dentro do canal anal (prolapso interno ou intussuscepção). Estas condições podem causar obstrução mecânica à evacuação e sensação de evacuação incompleta.

A intussuscepção, em particular, é uma condição na qual a parede retal superior se invagina para dentro da porção inferior do reto durante o esforço evacuatório, criando um bloqueio funcional. Embora a intussuscepção leve possa ser encontrada em pessoas assintomáticas, graus mais avançados estão frequentemente associados à constipação obstrutiva.

Enterocele e Sigmoidocele

Enterocele é uma herniação do peritônio contendo intestino delgado para o espaço retovaginal, enquanto sigmoidocele envolve o cólon sigmoide. Ambas as condições podem comprimir o reto posteriormente, dificultando a evacuação normal.

Estas alterações são frequentemente secundárias ao enfraquecimento do assoalho pélvico, podendo coexistir com retocele e prolapso de outros órgãos pélvicos, como bexiga (cistocele) ou útero (histerocele).

Megarreto e megacólon

O megarreto e o megacólon referem-se à dilatação anormal do reto ou do cólon, respectivamente. Podem ser congênitos, como na doença de Hirschsprung (ausência congênita de células ganglionares), ou adquiridos após constipação crônica de longa duração, onde o acúmulo persistente de fezes causa distensão progressiva das paredes intestinais.

Estas condições levam à diminuição da sensibilidade retal e redução na capacidade de contração efetiva, perpetuando um ciclo vicioso de constipação.

Exames para diagnosticar alterações anatômicas e funcionais que causam constipação

Avaliação clínica

O pilar do diagnóstico começa com uma história clínica detalhada e exame físico abrangente. O médico deve questionar sobre início, duração e natureza dos sintomas, fatores precipitantes, uso de medicamentos, comorbidades e histórico cirúrgico.

O exame físico, incluindo o exame digital retal, é crucial. Este último pode identificar fezes impactadas, estenoses, massas e, notavelmente, avaliar a função do puborretal durante o esforço evacuatório simulado, fornecendo pistas iniciais sobre possível defecação dissinérgica.

Manometria anorretal

A manometria anorretal é fundamental para avaliar distúrbios evacuatórios funcionais. Este exame utiliza sensores de pressão colocados no canal anal e reto para medir:

  • Pressão do esfíncter anal em repouso e durante contração voluntária
  • Relaxamento do esfíncter anal e puborretal durante o esforço evacuatório
  • Reflexo inibitório retoanal (importante para excluir doença de Hirschsprung)
  • Sensibilidade retal e capacidade de percepção do bolo fecal

Na defecação dissinérgica, a manometria tipicamente mostra aumento paradoxal (ao invés de diminuição) da pressão do canal anal durante o esforço evacuatório. A manometria de alta resolução, tecnologia mais recente, proporciona uma visualização espacial mais detalhada das pressões ao longo do canal anal.

Teste de expulsão do balão

Este teste simples, porém valioso, avalia a capacidade de evacuação. Um balão cheio com 50 ml de água ou ar é inserido no reto, e o paciente é solicitado a evacuá-lo em privacidade. A incapacidade de expelir o balão dentro de um minuto sugere dificuldade evacuatória, sendo altamente sugestiva de defecação dissinérgica quando associada a achados manométricos compatíveis.

Por sua simplicidade, baixo custo e boa correlação com outros testes, o teste de expulsão do balão é frequentemente recomendado como avaliação inicial em pacientes com suspeita de distúrbios evacuatórios.

Defecografia

A defecografia envolve a introdução de contraste no reto (tipicamente bário) e a obtenção de imagens radiográficas durante o esforço evacuatório. Este exame dinâmico permite visualizar:

  • Ângulo anorretal durante repouso e evacuação
  • Relaxamento do assoalho pélvico
  • Presença de retocele, enterocele, sigmoidocele
  • Intussuscepção retal
  • Prolapso retal
  • Esvaziamento retal completo ou incompleto

Uma variante moderna é a defecografia por ressonância magnética (RM), que oferece excelente resolução de tecidos moles sem exposição à radiação, permitindo também a visualização simultânea de todos os compartimentos pélvicos (anterior, médio e posterior).

Estudo do tempo de trânsito colônico

Este exame avalia o tempo que o conteúdo leva para percorrer o cólon. O método mais comum utiliza marcadores radiopacos que o paciente ingere, seguidos por radiografias abdominais seriadas para acompanhar sua progressão.

Um tempo de trânsito prolongado (>72 horas) sugere constipação por trânsito lento. Além disso, o padrão de retenção dos marcadores pode fornecer informações adicionais: retenção predominantemente no cólon proximal sugere inércia colônica, enquanto retenção no retossigmoide sugere distúrbio evacuatório.

Eletromiografia (EMG)

A EMG avalia a atividade elétrica dos músculos do assoalho pélvico, utilizando eletrodos de superfície ou de agulha. É particularmente útil para confirmar a contração paradoxal dos músculos pélvicos durante o esforço evacuatório em pacientes com defecação dissinérgica.

No entanto, devido ao desconforto associado aos eletrodos de agulha e à disponibilidade de métodos alternativos menos invasivos (como manometria), a EMG tem sido menos utilizada na prática clínica atual.

Abordagem diagnóstica recomendada

Baseando-se nas diretrizes da American Gastroenterological Association e da European Society of Neurogastroenterology and Motility, uma abordagem escalonada é recomendada:

  1. Avaliação inicial: história clínica detalhada, exame físico com exame digital retal e exclusão de causas secundárias (medicamentosas, metabólicas, obstrutivas).
  2. Testes de primeira linha: manometria anorretal e teste de expulsão do balão. Estes são considerados os exames iniciais por sua disponibilidade, custo-efetividade e capacidade de identificar a defecação dissinérgica, a causa mais tratável de constipação.
  3. Testes complementares: se os testes iniciais forem inconclusivos ou discordantes, avança-se para defecografia (convencional ou por RM) e estudo do tempo de trânsito colônico.

Importante ressaltar que uma característica comum destes distúrbios é a sobreposição de alterações anatômicas e funcionais. Por exemplo, pacientes com defecação dissinérgica frequentemente desenvolvem alterações anatômicas secundárias, como retocele ou intussuscepção, devido ao esforço crônico durante a evacuação. Portanto, uma avaliação diagnóstica abrangente é essencial para o planejamento terapêutico adequado.

Conclusão

A constipação pode resultar de uma complexa interação entre alterações anatômicas e funcionais que afetam a fisiologia normal da evacuação. Enquanto as alterações funcionais, como a defecação dissinérgica e o trânsito lento, interferem nos mecanismos neuromotores da evacuação, as alterações anatômicas, como retocele e prolapso, criam barreiras físicas à passagem das fezes.

Um diagnóstico preciso é fundamental para um tratamento direcionado e eficaz. Para isso, a escolha apropriada dos exames diagnósticos, seguindo uma abordagem escalonada e individualizada, pode fazer toda a diferença para estes pacientes. Assim, diante de um quadro de constipação refratária às medidas iniciais, não hesite em buscar avaliação especializada para identificação das possíveis alterações subjacentes.

Gostou desse post? Então você poderá gostar do post sobre Causas de constipação intestinal ou sobre Quando tomar laxante.

Referências

  • Bharucha AE, Lacy BE. Mechanisms, evaluation, and management of chronic constipation. Gastroenterology. 2020;158(5):1232-1249.
  • Rao SSC, Patcharatrakul T. Diagnosis and treatment of dyssynergic defecation. Journal of Neurogastroenterology and Motility. 2016;22(3):423-435.
  • Carrington EV, Scott SM, Bharucha A, et al. Expert consensus document: Advances in the evaluation of anorectal function. Nature Reviews Gastroenterology & Hepatology. 2018;15(5):309-323.
  • Grossi U, Carrington EV, Bharucha AE, et al. Diagnostic accuracy study of anorectal manometry for diagnosis of dyssynergic defecation. Gut. 2016;65(3):447-455.
  • American Gastroenterological Association. American Gastroenterological Association medical position statement on constipation. Gastroenterology. 2013;144(1):211-217.
  • Lamb CA, De Giorgio R, Coletta M, et al. Diagnosis and management of functional constipation: A European perspective. United European Gastroenterology Journal. 2022;10(4):357-379.
  • Heinrich H, Sauter M, Fox M, et al. Assessment of obstructive defecation by high-resolution anorectal manometry compared with magnetic resonance defecography. Gastroenterology. 2015;148(7):1315-1323.
  • Prichard DO, Lee T, Parthasarathy G, et al. High-resolution anorectal manometry for identifying defecatory disorders and rectal structural abnormalities in women. Clinical Gastroenterology and Hepatology. 2017;15(3):412-420.