Nutricionista Adriana Lauffer

Defecação dissinérgica: compreenda essa disfunção que causa constipação

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A defecação dissinérgica representa um distúrbio funcional do assoalho pélvico que afeta significativamente a qualidade de vida de 15-25% dos pacientes que sofrem com constipação crônica. Caracterizada pela incoordenação entre os músculos abdominais, retais e anais durante o processo evacuatório, esta condição cria um paradoxo fisiológico: enquanto o corpo tenta expelir as fezes contraindo os músculos abdominais, ocorre simultaneamente uma contração involuntária do músculo puborretal e do esfíncter anal externo, justamente quando estes deveriam relaxar.

Este bloqueio funcional transforma um ato naturalmente simples em uma experiência dolorosa e frustrante, provocando não apenas constipação severa, mas também uma cascata de sintomas debilitantes como dor abdominal, sensação persistente de evacuação incompleta e, frequentemente, complicações secundárias como hemorroidas e fissuras anais. Apesar de seu impacto considerável, a crescente compreensão dos mecanismos neurofisiológicos envolvidos e o desenvolvimento de terapias especializadas como o biofeedback têm proporcionado perspectivas promissoras de tratamento, com taxas de sucesso superiores a 70% quando adequadamente diagnosticada e tratada por equipes multidisciplinares especializadas. Neste post, vamos aprofundar nesse tema e compreender melhor como a defecação dissinérgica causa constipação.

O que é defecação dissinérgica

A defecação dissinérgica é uma disfunção específica do assoalho pélvico caracterizada pela incapacidade de coordenar adequadamente os músculos envolvidos no processo de evacuação. Esta condição ocorre quando há uma contração paradoxal ou relaxamento inadequado do músculo puborretal e do esfíncter anal externo durante a tentativa de evacuar, justamente no momento em que estes músculos deveriam relaxar para permitir a passagem das fezes.

De acordo com dados da Cleveland Clinic, a defecação dissinérgica afeta aproximadamente 15% a 25% de todos os casos de constipação crônica, sendo duas vezes mais comum em mulheres que em homens, e sua prevalência aumenta após os 65 anos de idade.

Esta disfunção pode ser compreendida como um padrão aprendido incorretamente, no qual a pessoa “esquece” como realizar o processo de evacuação de forma coordenada. Em vez de aumentar a pressão abdominal enquanto relaxa os músculos do assoalho pélvico, ocorre o inverso, gerando um bloqueio funcional que dificulta ou impede a saída das fezes.

Causas da defecação dissinérgica

A defecação dissinérgica pode ser tanto congênita quanto adquirida, embora seja muito mais frequente como condição adquirida ao longo da vida. As causas mais comuns incluem:

Fatores físicos

  • Traumas físicos na região pélvica, como os decorrentes de partos difíceis
  • Cirurgias perineais, retais ou pélvicas prévias
  • Lesões neurológicas que afetam a inervação do assoalho pélvico
  • Distúrbios musculares do assoalho pélvico

Fatores comportamentais e psicológicos

  • Hábito de reprimir o reflexo evacuatório repetidamente
  • Posturas inadequadas durante a evacuação
  • Experiências traumáticas relacionadas à evacuação na infância
  • Estresse crônico e ansiedade

Estudos têm demonstrado uma forte associação entre defecação dissinérgica e abuso sexual em mulheres, bem como outras formas de trauma psicológico. Fatores como gravidez, parto, descenso de órgãos pélvicos ou distúrbios neurogênicos do eixo cérebro-intestino podem levar a uma “síndrome de defecação obstruída funcional”.

Associação com outras condições de saúde

A defecação dissinérgica raramente ocorre isoladamente. Frequentemente coexiste com:

  • Síndrome do intestino irritável
  • Retocele (herniação da parede anterior do reto para dentro da vagina)
  • Prolapso retal
  • Intussuscepção retal (telescopamento da parede retal)
  • Síndrome da úlcera retal solitária
  • Doenças inflamatórias intestinais

Esta sobreposição de condições pode complicar tanto o diagnóstico quanto o tratamento, exigindo uma abordagem integrada e multidisciplinar.

Sintomas da defecação dissinérgica

Os sintomas da defecação dissinérgica estão diretamente relacionados à dificuldade no processo evacuatório e incluem:

  • Dor ou desconforto retal e/ou abdominal: resultante do esforço excessivo e da constipação crônica.
  • Dificuldade para iniciar ou completar a evacuação: mesmo com forte desejo de evacuar, a pessoa sente que as fezes não progridem adequadamente.
  • Esforço evacuatório excessivo e prolongado: independentemente da consistência das fezes.
  • Sensação persistente de evacuação incompleta: sensação de que ainda resta conteúdo no reto após a evacuação.
  • Necessidade de manobras digitais: algumas pessoas precisam pressionar a região vaginal, perineal ou anal para conseguir evacuar.
  • Evacuações infrequentes: geralmente menos de três vezes por semana.

Dor abdominal e defecação dissinérgica

A defecação dissinérgica frequentemente manifesta dor abdominal além do desconforto anal ou retal, devido à interconexão anatômica entre os músculos do assoalho pélvico e outras estruturas pélvicas e abdominais. Esta interdependência muscular explica como a tensão excessiva no assoalho pélvico cria um efeito dominó, gerando desequilíbrios que irradiam dor para a parte inferior do abdômen, região lombar e áreas adjacentes.

A intensidade desta dor varia de leve a moderada, podendo tornar-se significativamente desconfortável, especialmente quando exacerbada pelo esforço evacuatório excessivo, que aumenta a pressão intra-abdominal e sobrecarrega tanto os músculos abdominais quanto o sistema muscular profundo lombar. Esta cascata de tensão muscular não apenas intensifica a sintomatologia local, mas também contribui para o ciclo vicioso de desconforto, evitação do ato evacuatório e piora progressiva da condição.

Lembre-se de que os sintomas podem variar e que apenas um profissional de saúde qualificado pode fazer um diagnóstico preciso. Se você suspeitar de anismo ou estiver enfrentando dificuldades no processo de evacuação, é importante buscar orientação médica para uma avaliação completa e um plano de tratamento adequado.

Quando investigar a defecação dissinérgica

É recomendável a investigação de defecação dissinérgica nas seguintes situações:

  • Constipação refratária aos tratamentos convencionais com laxantes, dieta rica em fibras e hidratação adequada
  • Sintomas persistentes de evacuação difícil ou incompleta por pelo menos três meses
  • Impacto significativo na qualidade de vida devido aos sintomas evacuatórios
  • Necessidade frequente de manobras manuais para facilitar a evacuação
  • Associação com dor pélvica crônica inexplicada por outras causas

O encaminhamento para um especialista é fundamental em casos suspeitos de defecação dissinérgica. Gastroenterologistas, coloproctologistas e urologistas com experiência em distúrbios do assoalho pélvico são os profissionais mais indicados para conduzir a investigação adequada.

Esses profissionais podem realizar exames clínicos, como a análise do padrão de evacuação. E em alguns casos, podem recomendar testes mais específicos, como a manometria anorretal ou outros estudos de imagem, para avaliar a função dos músculos do assoalho pélvico e determinar se o anismo está presente.

Diagnóstico da defecação dissinérgica

O diagnóstico da defecação dissinérgica requer uma abordagem multifacetada que inclui:

Avaliação clínica

Uma história detalhada dos sintomas e um exame físico completo, incluindo o exame digital retal, são essenciais.

O exame digital retal tem sensibilidade de 87% e especificidade de 75% para o diagnóstico de dissinergismo quando realizado por um médico experiente. Durante este exame, avalia-se o tônus do esfíncter, a contratilidade do puborretal e, crucialmente, a capacidade de relaxamento desses músculos durante o esforço evacuatório simulado.

Teste de expulsão do balão

Este teste simples mas muito informativo examina a capacidade de relaxamento do assoalho pélvico. Um dispositivo semelhante a fezes (balão cheio com água) é colocado no reto e a pessoa tenta expeli-lo em privacidade. A incapacidade de expulsar o balão em um minuto sugere fortemente a presença de defecação dissinérgica.

Manometria anorretal

A manometria anorretal é essencial para o diagnóstico de defecação dissinérgica. Utiliza sensores de pressão para medir as forças de contração e relaxamento dos músculos do esfíncter anal e do puborretal. Em pacientes com defecação dissinérgica, observa-se um aumento paradoxal da pressão anal durante o esforço evacuatório, quando deveria ocorrer o contrário.

Defecografia

Pode ser realizada com bário (tradicional) ou por ressonância magnética. Neste exame, avalia-se a dinâmica da evacuação em tempo real, permitindo visualizar a contração paradoxal do puborretal, o ângulo anorretal durante o esforço evacuatório e possíveis alterações anatômicas associadas.

Eletromiografia do assoalho pélvico

Registra a atividade elétrica dos músculos do assoalho pélvico, confirmando a contração paradoxal durante o esforço evacuatório.

O diagnóstico definitivo de defecação dissinérgica, segundo os critérios de Roma IV, requer a presença de sintomas de constipação associados a pelo menos dois testes objetivos demonstrando padrão dissinérgico de evacuação.

Tratamentos para defecação dissinérgica

O tratamento da defecação dissinérgica concentra-se principalmente na reeducação da função muscular do assoalho pélvico e em medidas complementares:

Biofeedback

O biofeedback é o tratamento de primeira linha para a defecação dissinérgica, com estudos demonstrando taxas de sucesso significativamente superiores às terapias padrão. Em um estudo controlado, o padrão de dissinergismo foi corrigido em 79% dos pacientes que receberam biofeedback, em comparação com apenas 4% no grupo de tratamento simulado e 8,3% no grupo de terapia padrão.

Esta técnica, que ajuda a retreinar certos músculos para facilitar os movimentos intestinais, melhorou a condição dos pacientes em 70 a 80% dos casos. Estudos demonstram que o biofeedback é mais eficaz que laxantes ou medicamentos como diazepam para tratar a defecação dissinérgica.

O biofeedback consiste em sessões terapêuticas onde o paciente aprende a coordenar corretamente os músculos abdominais, retais e anais durante a evacuação. Utilizando sensores conectados a um monitor, o paciente visualiza a atividade de seus músculos em tempo real, aprendendo a relaxar o esfíncter anal e o puborretal enquanto contrai adequadamente os músculos abdominais.

Um programa de biofeedback típico envolve 4-6 sessões distribuídas ao longo de 2-3 meses. Recentemente, opções de biofeedback domiciliar têm se mostrado tão eficazes quanto as sessões em consultório, expandindo o acesso a este tratamento.

Para tratar o grande número de pacientes com constipação na comunidade, o desenvolvimento de um programa de autotreinamento domiciliar será essencial. Pesquisas recentes mostraram que a terapia de biofeedback domiciliar funcionou tão bem em pacientes com defecação dissinérgica quanto a terapia em consultório.

Fisioterapia pélvica

A fisioterapia especializada do assoalho pélvico complementa o biofeedback, utilizando técnicas manuais, exercícios específicos e educação do paciente para:

  • Melhorar a consciência corporal da região pélvica
  • Promover relaxamento adequado dos músculos pélvicos
  • Treinar a coordenação muscular durante a evacuação
  • Corrigir posturas evacuatórias inadequadas

Modificações na dieta e estilo de vida

Embora não tratem diretamente o mecanismo da defecação dissinérgica, estas medidas facilitam o processo evacuatório:

  • Alimentação rica em fibras: frutas, verduras, legumes e grãos integrais promovem fezes mais macias e volumosas.
  • Hidratação adequada: pelo menos 2 litros de água diariamente para manter fezes bem hidratadas.
  • Regularidade de horários: estabelecer um horário fixo para tentativas de evacuação, preferencialmente após as refeições, quando o reflexo gastrocólico é mais ativo.
  • Postura adequada durante a evacuação: utilizar um banquinho sob os pés para simular a posição de cócoras, que facilita o alinhamento do canal anal.

Tratamentos complementares

  • Laxantes: podem ser úteis temporariamente para facilitar a evacuação durante o processo de reeducação muscular, mas não devem ser utilizados como terapia única ou de longo prazo.
  • Toxina botulínica: em casos selecionados, a injeção de toxina botulínica no músculo puborretal pode promover o relaxamento temporário e facilitar o reaprendizado da coordenação muscular.
  • Suporte psicológico: a terapia cognitivo-comportamental pode ser benéfica para pacientes cuja defecação dissinérgica está relacionada a traumas psicológicos ou ansiedade significativa relacionada à evacuação.
  • Cirurgia: em casos graves e refratários, cirurgia pode ser considerada. No entanto, a cirurgia é geralmente uma opção após outros tratamentos mais conservadores terem sido tentados e não terem sido eficazes.

Conclusão

A defecação dissinérgica é uma disfunção do assoalho pélvico que pode impactar significativamente a qualidade de vida das pessoas afetadas. Contudo, através do diagnóstico preciso e tratamento adequado, a maioria dos pacientes obtém melhora significativa dos sintomas.

Estudos recentes demonstram que o biofeedback, seja realizado em casa ou em consultório, apresenta eficácia de aproximadamente 70% no tratamento da defecação dissinérgica, representando uma opção terapêutica promissora mesmo para casos resistentes às abordagens convencionais.

A abordagem multidisciplinar, envolvendo gastroenterologistas, coloproctologistas, fisioterapeutas especializados e, quando necessário, psicólogos, proporciona os melhores resultados. O engajamento ativo do paciente no tratamento, incluindo as práticas domiciliares recomendadas e as mudanças na dieta e estilo de vida, é fundamental para o sucesso terapêutico a longo prazo.

Se você apresenta sintomas sugestivos de defecação dissinérgica, é importante buscar avaliação médica especializada. Com orientação adequada e tratamento direcionado, é possível restabelecer uma função evacuatória normal e recuperar o bem-estar e qualidade de vida.

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Referências

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