A espelta, também conhecida como trigo espelta ou espelta-maior, vem ganhando popularidade no cenário da alimentação saudável e sustentável nos últimos anos. No entanto, este cereal de aparência rústica e sabor levemente adocicado está longe de ser uma novidade – na verdade, trata-se de um dos grãos mais antigos cultivados pela humanidade, com evidências arqueológicas que datam de aproximadamente 8.000 anos atrás. Seu recente ressurgimento nas prateleiras de lojas de produtos naturais e nas cozinhas de chefs renomados não é mera casualidade, mas sim resultado das impressionantes qualidades nutricionais e culinárias deste grão ancestral. Neste artigo, vamos explorar a história, benefícios, usos culinários e particularidades da espelta, um cereal que atravessou milênios e continua relevante na alimentação contemporânea.
História e origem da espelta
A espelta (Triticum spelta) é um grão ancestral da família do trigo, considerada uma das primeiras espécies domesticadas para consumo humano. Originária do Oriente Médio e cultivada extensivamente na Europa desde a Idade do Bronze, a espelta desempenhou papel fundamental na alimentação de diversas civilizações antigas, incluindo egípcios, gregos e romanos. Hipócrates, o pai da medicina, já reconhecia suas propriedades medicinais há mais de 2.400 anos.

Durante a Idade Média, a espelta foi amplamente cultivada na Europa, especialmente na Alemanha, onde era conhecida como “Dinkel”. Posteriormente, com a Revolução Industrial e a modernização da agricultura, o grão foi gradualmente substituído por variedades de trigo comum mais fáceis de processar e com maior rendimento. Porém, nas últimas décadas, a espelta experimentou um notável ressurgimento, impulsionado pela busca por alimentos menos processados e mais nutritivos.
Uma característica distintiva da espelta é sua casca protetora resistente, que permanece intacta durante a colheita. Esta peculiaridade tornou seu processamento mais trabalhoso e contribuiu para seu declínio comercial no passado, mas hoje é reconhecida como uma vantagem, pois a casca protege o grão contra pragas e poluentes ambientais, além de preservar seus nutrientes.
Valor nutricional da espelta
O crescente interesse pela espelta se deve principalmente ao seu impressionante perfil nutricional. Comparada ao trigo comum moderno, a espelta apresenta vantagens significativas que chamam a atenção de nutricionistas e entusiastas da alimentação saudável:
- Rica em proteínas: a espelta contém aproximadamente 15-17% de proteína, superando o trigo comum (10-13%). Além disso, oferece um perfil mais completo de aminoácidos essenciais.
- Alto teor de fibras: com cerca de 8-10% de fibras, a espelta contribui para a saúde digestiva, sensação de saciedade e controle dos níveis de glicose sanguínea.
- Complexo vitamínico do grupo B: particularmente rica em niacina (B3), tiamina (B1) e riboflavina (B2), vitaminas essenciais para o metabolismo energético e função neurológica.
- Minerais essenciais: destaca-se pela presença de magnésio, zinco, ferro, fósforo e potássio em quantidades significativas.
- Presença de antioxidantes: contém compostos com capacidade antioxidante, como ácidos fenólicos e carotenoides, que combatem os radicais livres no organismo.
- Gorduras saudáveis: possui ácidos graxos essenciais, principalmente ômega-3 e ômega-6, importantes para a saúde cardiovascular.
Um diferencial importante é que a estrutura dos carboidratos na espelta difere da encontrada no trigo moderno, o que pode resultar em um impacto menos acentuado nos níveis de açúcar no sangue para algumas pessoas.
Espelta e seus benefícios
Os nutrientes presentes na espelta trabalham em conjunto para proporcionar diversos benefícios à saúde:
Saúde digestiva
As fibras solúveis e insolúveis presentes na espelta promovem a regularidade intestinal e nutrem a microbiota, favorecendo a proliferação de bactérias benéficas. Ainda, muitas pessoas com sensibilidade ao trigo comum relatam melhor tolerância à espelta, possivelmente devido às diferenças na estrutura de suas proteínas, embora seja importante ressaltar que a espelta contém glúten e não é adequada para celíacos.
Controle glicêmico
O alto teor de fibras e a estrutura complexa dos carboidratos da espelta contribuem para uma liberação mais gradual de açúcar no sangue, resultando em um índice glicêmico mais favorável em comparação com grãos refinados.
Saúde cardiovascular
A combinação de fibras solúveis, ácidos graxos essenciais e antioxidantes presentes na espelta pode contribuir para a redução do colesterol LDL (“ruim”) e a manutenção da saúde cardiovascular.
Suporte ao sistema imunológico
Os minerais como zinco e ferro, juntamente com as vitaminas do complexo B, desempenham papéis fundamentais no funcionamento adequado do sistema imunológico.
Baixo índice glicêmico
O perfil nutricional balanceado da espelta fornece energia de forma gradual e constante, evitando os picos e quedas de energia associados ao consumo de carboidratos refinados.
O glúten da espelta
A estrutura do glúten na espelta é diferente. O glúten é composto principalmente por duas proteínas: a gliadina e a glutenina. Na espelta, estas proteínas existem em proporções e configurações moleculares diferentes do trigo comum moderno.
A diferença principal está na estrutura molecular das proteínas do glúten na espelta, que tende a ser mais frágil e solúvel em água. Isso significa que, durante o processo de fermentação e preparo de massas, o glúten da espelta não forma redes tão fortes e elásticas quanto o glúten do trigo comum.
Esta característica tem dois efeitos principais: primeiro, torna os produtos feitos com espelta menos elásticos e mais quebradiços; segundo, para algumas pessoas (não para celíacos), esta estrutura diferente pode ser mais fácil de digerir, pois as enzimas digestivas conseguem quebrar essas proteínas mais facilmente.
É importante ressaltar que, apesar dessa diferença estrutural, a espelta ainda contém glúten e, por isso, não é adequada para pessoas com doença celíaca ou alergia ao trigo. A maior digestibilidade relatada por algumas pessoas com sensibilidade ao trigo pode estar relacionada a esta diferença estrutural ou a outros componentes da espelta.
Como utilizar a espelta na culinária
Uma das razões para o renascimento da espelta na gastronomia moderna é sua notável versatilidade. O grão pode ser utilizado de diversas formas:
Farinha de espelta
A farinha de espelta pode substituir parcial ou totalmente a farinha de trigo comum em receitas de pães, bolos, biscoitos e massas. Confere um sabor levemente adocicado e nozes, além de uma textura mais úmida e densa. É importante notar que, por conter menos glúten que o trigo comum (e um glúten de estrutura diferente), pode requerer ajustes nas receitas tradicionais.
Grãos inteiros
Os grãos de espelta podem ser cozidos e usados em saladas, sopas, risotos e como acompanhamento de pratos principais, semelhante ao uso de cevada ou arroz integral. Seu sabor terroso e textura ligeiramente mastigável adicionam caráter a qualquer prato.
Flocos de espelta
Semelhantes à aveia em aparência, os flocos de espelta fazem excelentes mingaus e cereais matinais, além de poderem ser incorporados a granolas, barras de cereais caseiras e coberturas crocantes para sobremesas.
Massas de espelta
Massas feitas com espelta possuem sabor mais complexo e geralmente uma melhor capacidade de absorver molhos, oferecendo uma alternativa saborosa às massas convencionais.
Como introduzir a espelta no dia-a-dia
Para quem deseja experimentar os benefícios da espelta, aqui estão algumas sugestões práticas:
- Comece substituindo 1/3 da farinha de trigo por farinha de espelta em suas receitas favoritas de pães e bolos para se acostumar com seu sabor e comportamento.
- Experimente o grão integral de espelta cozido como base para bowls de almoço nutritivos, adicionando vegetais, proteínas e molhos de sua preferência.
- Prepare um mingau matinal com flocos de espelta, leite vegetal, frutas frescas e um toque de canela e mel para um café da manhã energético.
- Utilize a farinha de espelta para engrossar sopas e molhos, adicionando nutrição e um sutil sabor de nozes.
- Experimente massas feitas com espelta, que combinam especialmente bem com molhos mais robustos como ragus de carne ou molhos de cogumelos.
Receita com farinha de espelta
Panqueca de framboesa
Ingredientes:
- 1/2 queijo minas
- 1 ovo
- 2 colheres de sopa de açúcar mascavo
- 6 colheres de sopa de farinha de espelta
- 1 colher de chá de fermento em pó
- 80 ml de leite
- 1 colher de sopa de óleo arroz ou de algodão
- framboesas in natura
- iogurte natural para acompanhar
Preparação:
- Num robot de cozinha ou num liquidificador, triture o queijo minas.
- Junte o ovo, o óleo e o leite e misture bem.
- Adicione a farinha, o açúcar, o fermento.
- Envolva bem os ingredientes de forma a que fique uma massa bem homogênea.
- Numa fritadeira anti-aderente, coloque um pouco de massa, apenas para cobrir o fundo da frigideira.
- Adicione algumas framboesas.
- Quando começar a massa a borbulhar, vire para que cozinhe do outro lado.
- Sirva com iogurte natural.
Fonte da receita: blog Meu Report
Meio ambiente e espelta
Além dos benefícios nutricionais e gastronômicos, a espelta apresenta vantagens significativas do ponto de vista da sustentabilidade:
- Adaptabilidade: consegue prosperar em solos pobres onde outras culturas lutariam para sobreviver, reduzindo a necessidade de fertilizantes.
- Resistência natural: sua casca protetora reduz a necessidade de pesticidas, tornando o cultivo mais amigável ao meio ambiente.
- Eficiência hídrica: requer menos água que muitas variedades modernas de trigo.
- Biodiversidade agrícola: o cultivo de grãos ancestrais como a espelta contribui para a diversidade genética das culturas, um fator crucial para a resiliência dos sistemas alimentares frente às mudanças climáticas.
Estas características fazem da espelta uma opção atraente para a agricultura sustentável e sistemas alimentares regenerativos.
Considerações importantes sobre a espelta
Apesar dos numerosos benefícios, existem alguns pontos importantes a considerar sobre a espelta:
- Presença de glúten: embora algumas pessoas com sensibilidade ao trigo possam tolerar melhor a espelta, ela contém glúten e é totalmente inadequada para pessoas com doença celíaca.
- Disponibilidade e custo: a espelta geralmente é mais cara que o trigo comum devido à menor escala de produção e ao processamento mais laborioso.
- Necessidade de ajustes culinários: por suas características particulares, receitas tradicionais podem precisar de adaptações quando se utiliza farinha de espelta.
Conclusão
A espelta representa um fascinante exemplo de como alimentos tradicionais e ancestrais podem encontrar relevância renovada no mundo contemporâneo. Seu perfil nutricional superior, versatilidade culinária e vantagens ambientais a tornam uma adição valiosa à dieta moderna, especialmente para aqueles que buscam alternativas mais nutritivas aos grãos convencionais.
Ao incorporar a espelta em nossa alimentação, não estamos apenas fazendo uma escolha benéfica para nossa saúde, mas também nos reconectando com tradições alimentares milenares que resistiram ao teste do tempo. Afinal, em um mundo onde o processamento excessivo de alimentos tem sido associado a diversos problemas de saúde, olhar para o passado pode, paradoxalmente, ser um caminho inovador para uma alimentação mais consciente e sustentável.
Se você ainda não experimentou este grão ancestral, considere incluí-lo gradualmente em seu repertório culinário – seu paladar e seu corpo provavelmente agradecerão.
Se você gostou da espelta, poderá gostar do sorgo e farinha de teff.
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