Nutricionista Adriana Lauffer

A beta-casomorfina-7 (BCM-7) e seus efeitos na saúde

Um simples copo de leite, alimento básico em culturas ao redor do mundo, contém milhares de componentes bioativos cuja complexidade ainda desafia a ciência nutricional moderna. Entre estes componentes, a beta-casomorfina-7 (BCM-7) tem emergido como foco de intensa investigação científica e debate entre pesquisadores, indústria alimentícia e profissionais de saúde. Este peptídeo bioativo, liberado durante a digestão de um tipo específico de proteína láctea – a beta-caseína A1 – apresenta propriedades semelhantes aos opioides que potencialmente afetam múltiplos sistemas no organismo humano.

O crescente interesse pela BCM-7 coincide com o surgimento do leite A2A2 no mercado, um produto diferenciado que não libera este peptídeo durante a digestão. Surpreendentemente, esta característica não representa uma inovação tecnológica recente, mas um retorno à composição original do leite bovino antes da mutação genética que ocorreu em rebanhos europeus há milhares de anos.

Muitas pessoas consomem produtos lácteos contendo beta-caseína A1 sem aparentes efeitos adversos. No entanto, evidências científicas emergentes sugerem que um subgrupo da população pode apresentar sensibilidade específica à BCM-7, manifestando desde sintomas digestivos até potenciais efeitos sistêmicos mais amplos.

Neste post, vamos aprofundar o estado atual do conhecimento sobre a BCM-7, analisando criticamente as evidências disponíveis sobre seus efeitos no sistema digestivo, resposta imunológica, função cognitiva e além, destacando tanto o que sabemos quanto as importantes lacunas que ainda persistem neste fascinante campo de pesquisa.

O que é a beta-casomorfina-7?

A BCM-7 é um peptídeo composto por sete aminoácidos (Tyr-Pro-Phe-Pro-Gly-Pro-Ile) que é liberado durante a digestão da beta-caseína A1, mas não (ou em quantidades significativamente menores) durante a digestão da beta-caseína A2. O nome “casomorfina” deriva de “caseína” e “morfina”, refletindo sua estrutura semelhante aos opioides e sua capacidade de interagir com receptores opioides no organismo.

A principal diferença estrutural que permite a formação da BCM-7 está na posição 67 da cadeia proteica: a beta-caseína A1 possui histidina nesta posição, enquanto a A2 possui prolina. Esta substituição de um único aminoácido cria um local de clivagem mais vulnerável na proteína A1, facilitando a liberação da BCM-7 durante a digestão.

Efeitos da BCM-7 no trato gastrointestinal

Vários estudos têm investigado os efeitos da BCM-7 no sistema digestivo:

  1. Motilidade intestinal: devido às suas propriedades semelhantes aos opioides, a BCM-7 pode potencialmente afetar a motilidade intestinal, reduzindo o trânsito e contribuindo para constipação em algumas pessoas sensíveis.
  2. Permeabilidade intestinal: pesquisas preliminares sugerem que a BCM-7 pode influenciar a permeabilidade da barreira intestinal em indivíduos predispostos, possivelmente contribuindo para o que popularmente se conhece como “intestino vazado” (permeabilidade intestinal aumentada ou leaky gut).
  3. Inflamação intestinal: alguns estudos em modelos animais indicam que a BCM-7 pode promover processos inflamatórios no intestino em determinadas condições, embora os mecanismos exatos ainda não estejam completamente elucidados.
  4. Desconforto digestivo: estudos clínicos comparando leite A1 e A2 observaram que participantes consumindo leite contendo apenas beta-caseína A2 reportaram menos flatulência, inchaço abdominal, dor e alterações na consistência das fezes em comparação ao consumo de leite contendo beta-caseína A1.

Efeitos da BCM-7 no organismo

Além dos efeitos no sistema digestivo, pesquisadores têm investigado possíveis impactos sistêmicos da BCM-7:

Resposta imunológica: alguns estudos sugerem que a BCM-7 pode influenciar a resposta imunológica, possivelmente contribuindo para processos inflamatórios ou autoimunes em indivíduos geneticamente suscetíveis.

Sistema nervoso central e função cognitiva: Por ser um peptídeo com propriedades opioides, a BCM-7 poderia teoricamente atravessar a barreira hematoencefálica em indivíduos com permeabilidade aumentada (como crianças pequenas) e interagir com receptores no sistema nervoso central. Um estudo particularmente relevante realizado por Jianqin e colaboradores, publicado no Nutrition Journal em 2016, avaliou não apenas os efeitos gastrointestinais, mas também a função cognitiva em participantes consumindo leite A1 versus A2.

Os resultados foram notáveis: os pesquisadores observaram que indivíduos consumindo leite contendo apenas beta-caseína A2 demonstraram melhores tempos de reação e menor erro em testes cognitivos em comparação aos períodos em que consumiram leite contendo beta-caseína A1. Este efeito foi especialmente pronunciado entre participantes que reportavam intolerância prévia ao leite, sugerindo uma possível correlação entre a sensibilidade digestiva à beta-caseína A1 e seus efeitos neurológicos.

Os pesquisadores propuseram que a liberação de BCM-7 a partir da beta-caseína A1 poderia estar influenciando a função cerebral através de mecanismos inflamatórios sistêmicos ou interações diretas com receptores opioides no sistema nervoso central, embora os mecanismos exatos ainda requeiram investigação adicional.

Sistema cardiovascular: algumas pesquisas exploraram possíveis conexões entre a exposição à BCM-7 e marcadores de risco cardiovascular, embora não existam conclusões definitivas nesta área.

Diabetes tipo 1: Estudos sugeriram correlações entre o consumo populacional de leite A1 e a incidência de diabetes tipo 1, levantando hipóteses sobre o papel da BCM-7 na patogênese desta doença autoimune. No entanto, estudos de intervenção controlados ainda são necessários para confirmar estas associações.

    Estado atual das pesquisas e considerações importantes

    É essencial contextualizar o conhecimento atual sobre a BCM-7 com algumas considerações importantes:

    1. Variabilidade individual: a resposta à BCM-7 varia significativamente entre indivíduos, provavelmente influenciada por fatores genéticos, composição da microbiota intestinal e estado geral de saúde.
    2. Metabolização da BCM-7: em adultos saudáveis, a maior parte da BCM-7 é degradada por enzimas peptidases no trato digestivo. Condições que afetam a função destas enzimas ou a integridade da barreira intestinal podem potencialmente aumentar a absorção sistêmica deste peptídeo.
    3. Limitações metodológicas: muitos estudos sobre os efeitos da BCM-7 apresentam limitações metodológicas, como tamanhos amostrais pequenos, desenhos não randomizados ou dificuldades na quantificação precisa da exposição à BCM-7.
    4. Divergências na literatura científica: o campo de pesquisa sobre a BCM-7 apresenta resultados por vezes contraditórios, refletindo tanto a complexidade do tema quanto a influência de fatores confundidores nos estudos.
    5. Controvérsia industrial: o debate sobre os potenciais efeitos da BCM-7 ocorre num contexto de interesses comerciais significativos, o que pode influenciar a interpretação e divulgação dos resultados científicos.

    Perspectivas futuras

    O estudo da BCM-7 e seus efeitos na saúde humana representa um campo em evolução. Pesquisas futuras, especialmente estudos clínicos randomizados de larga escala e longo prazo, serão essenciais para esclarecer:

    • A verdadeira magnitude dos efeitos da BCM-7 em diferentes populações
    • Mecanismos moleculares precisos de sua ação no organismo
    • Fatores que determinam a sensibilidade individual à BCM-7
    • Estratégias de intervenção para indivíduos sensíveis

    Conclusão

    A beta-casomorfina-7 representa um exemplo fascinante de como pequenas diferenças na estrutura proteica podem potencialmente influenciar a saúde humana. Embora existam evidências sugestivas de seus efeitos em múltiplos sistemas, a ciência ainda está construindo um entendimento completo deste peptídeo bioativo.

    Para consumidores interessados nos potenciais benefícios do leite A2A2, uma abordagem razoável seria a auto-observação cuidadosa após o consumo, reconhecendo que a resposta individual pode variar consideravelmente. Para profissionais de saúde, o conhecimento sobre a BCM-7 oferece uma perspectiva adicional na avaliação de pacientes com sintomas gastrointestinais inexplicados ou outras condições potencialmente relacionadas.

    Finalmente, é importante manter uma visão equilibrada, reconhecendo tanto os potenciais efeitos adversos da BCM-7 para indivíduos sensíveis quanto a realidade de que milhões de pessoas consomem leite contendo beta-caseína A1 regularmente sem aparentes efeitos negativos.

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    Referências

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