A vitamina D destaca-se como uma substância única no universo das vitaminas, com características que a posicionam na interface entre vitaminas e hormônios. Esta vitamina lipossolúvel é essencial para múltiplas funções fisiológicas, desde o clássico papel no metabolismo mineral até ações recentemente descobertas na modulação imunológica e expressão gênica. Sua importância para a saúde humana é evidenciada pelo fato de que aproximadamente 1 bilhão de pessoas em todo o mundo apresentam níveis inadequados, configurando um problema de saúde pública global.
Metabolismo da vitamina D
Existem duas formas principais de vitamina D com relevância nutricional:
- Vitamina D2 (ergocalciferol): derivada do ergosterol, presente em alimentos de origem vegetal, principalmente fungos expostos à radiação ultravioleta.
- Vitamina D3 (colecalciferol): forma sintetizada na pele humana quando exposta à radiação UVB solar (290-315 nm) e também encontrada em alimentos de origem animal.
Diferentemente da classificação tradicional, a vitamina D segue um complexo processo metabólico de ativação, transformando-se efetivamente em um hormônio ativo:
- Após ingestão dietética ou síntese cutânea, as formas inativas (D2 ou D3) são transportadas pela proteína ligadora de vitamina D (DBP) até o fígado;
- No fígado, ocorre a primeira hidroxilação pela enzima 25-hidroxilase, formando a 25-hidroxivitamina D [25(OH)D] ou calcidiol, principal forma circulante e marcador do status corporal de vitamina D;
- Em seguida, nos rins, a enzima 1α-hidroxilase converte o calcidiol em 1,25-dihidroxivitamina D [1,25(OH)₂D] ou calcitriol, a forma biologicamente ativa.
Este metabolismo explica por que a vitamina D é considerada um hormônio: o calcitriol age como hormônio esteroide, ligando-se a receptores nucleares específicos (VDR) presentes em praticamente todos os tecidos do organismo, modulando a expressão de aproximadamente 3% do genoma humano.
A vitamina D é tida como um hormônio pleiotrópico. O termo “hormônio pleiotrópico” refere-se a um hormônio que exerce múltiplos efeitos biológicos em diferentes tecidos e sistemas do organismo, indo além de uma única função específica. A palavra “pleiotrópico” vem do grego “pleion” (mais) e “tropos” (mudança/direção), significando literalmente “múltiplas direções” ou “múltiplos efeitos”.
Fontes de vitamina D
As principais fontes de vitamina D incluem:
- Síntese cutânea: responsável por 80-90% da vitamina D no organismo em condições ideais. Fatores que influenciam esta síntese incluem:
- Latitude geográfica (reduzida acima de 37° norte ou abaixo de 37° sul)
- Estação do ano (reduzida no inverno)
- Horário do dia (ideal entre 10h e 15h)
- Pigmentação da pele (indivíduos com pele mais escura necessitam de 3-5 vezes mais tempo de exposição)
- Idade (capacidade de síntese reduz 75% aos 70 anos)
- Uso de protetor solar (FPS 30 reduz a síntese em até 95%)
- Fontes alimentares naturais:
- Peixes gordurosos: salmão selvagem (600-1000 UI/100g), atum, sardinha, cavala
- Gema de ovo (20-50 UI/unidade)
- Cogumelos expostos à luz UV (300-500 UI/100g)
- Óleo de fígado de bacalhau (400-1000 UI/colher de sopa)
- Alimentos fortificados (variáveis conforme legislação de cada país):
- Leites e derivados
- Cereais matinais
- Sucos de frutas
- Margarina
- Suplementação: Disponível em diversas formulações, geralmente como vitamina D3 (colecalciferol), que apresenta eficácia 87% superior à vitamina D2 na elevação e manutenção dos níveis séricos.
Funções da vitamina D no organismo
A vitamina D exerce múltiplas funções no organismo humano, atuando tanto em mecanismos genômicos (via receptor nuclear VDR) quanto não-genômicos (via receptores de membrana):
1. Metabolismo do cálcio, saúde óssea e vitamina D
- Aumenta a absorção intestinal de cálcio (30% para 80% em condições ótimas) e fósforo
- Promove a reabsorção renal de cálcio e fósforo
- Regula a atividade dos osteoblastos e osteoclastos no remodelamento ósseo
- Modula a secreção de paratormônio (PTH) pelas glândulas paratireoides
A deficiência crônica de vitamina D está diretamente associada a:
- Raquitismo em crianças (deformidades ósseas por mineralização inadequada da matriz óssea)
- Osteomalacia em adultos (matriz óssea desmineralizada)
- Osteoporose (especialmente em idosos)
- Maior risco de fraturas
2. Função imunológica e vitamina D
O calcitriol exerce papel crucial na regulação imunológica, através de:
- Estímulo à produção de peptídeos antimicrobianos como catelicidina
- Modulação da diferenciação de células dendríticas
- Regulação do equilíbrio entre respostas Th1/Th2/Th17/Treg
- Supressão de processos inflamatórios excessivos
Estudos observacionais e experimentais associam a deficiência de vitamina D a maior susceptibilidade a infecções respiratórias, doenças autoimunes e processos inflamatórios crônicos.
3. Função muscular e vitamina D
Receptores de vitamina D estão presentes nas células musculares, onde exercem papel na:
- Regulação do transporte de cálcio para contração muscular
- Síntese proteica e crescimento das fibras musculares
- Diferenciação de mioblastos
A deficiência grave manifesta-se como miopatia proximal, enquanto estudos de intervenção mostram que a correção dos níveis de vitamina D pode reduzir quedas em idosos em até 22%.
4. Saúde intestinal, microbiota e vitamina D
A vitamina D exerce papel fundamental na homeostase intestinal e na composição da microbiota através de múltiplos mecanismos:
- Integridade da barreira intestinal: a vitamina D regula a expressão e distribuição de proteínas de junção celular como claudinas, ocludina e zonulina, fortalecendo as junções intercelulares e reduzindo a permeabilidade intestinal. Estudos experimentais demonstram que a deficiência de vitamina D está associada ao comprometimento desta barreira, facilitando a translocação bacteriana e endotoxemia.
- Modulação da microbiota: receptores de vitamina D (VDR) estão amplamente expressos em células epiteliais intestinais e influenciam diretamente a composição microbiana. Pesquisas recentes demonstram que níveis adequados de vitamina D promovem maior diversidade microbiana e favorecem o crescimento de bactérias produtoras de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), particularmente butirato.
- Regulação da resposta imune intestinal: a vitamina D modula o equilíbrio entre tolerância imunológica e inflamação no intestino, regulando a diferenciação de células T reguladoras e a produção de citocinas anti-inflamatórias como IL-10. Esta ação é particularmente relevante na prevenção de inflamação intestinal excessiva e condições como doença inflamatória intestinal.
- Proteção contra patógenos entéricos: a vitamina D estimula a produção de peptídeos antimicrobianos pelas células epiteliais intestinais, como defensinas e catelicidina, que exercem ação bactericida direta contra patógenos intestinais.
Estudos clínicos têm mostrado associação entre deficiência de vitamina D e maior incidência e gravidade de doenças inflamatórias intestinais, sensibilidades e intolerâncias alimentares e infecções entéricas. Além disso, ensaios de intervenção preliminares sugerem que a normalização dos níveis de vitamina D pode melhorar sintomas gastrointestinais e marcadores inflamatórios em pacientes com estas condições.
5. Outras funções da vitamina D
Evidências emergentes, porém ainda em investigação, sugerem potenciais benefícios da vitamina D em:
- Regulação da pressão arterial e função cardiovascular
- Sensibilidade à insulina e metabolismo glicêmico
- Processos neurodegenerativos e saúde mental
- Controle do crescimento celular e potencial anticancerígeno
É importante observar que, embora existam associações epidemiológicas entre níveis baixos de vitamina D e maior incidência de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e alguns tipos de câncer, os estudos de intervenção com suplementação apresentam resultados heterogêneos e, em sua maioria, não confirmam benefícios inequívocos para desfechos não-esqueléticos.
Avaliação dos níveis de vitamina D
A avaliação laboratorial do status de vitamina D é realizada através da dosagem sérica de 25-hidroxivitamina D [25(OH)D], que reflete tanto a produção endógena quanto a ingestão dietética. A interpretação dos resultados segue critérios estabelecidos por organizações internacionais:
- Deficiência: <20 ng/mL (<50 nmol/L)
- Insuficiência: 20-30 ng/mL (50-75 nmol/L)
- Suficiência: >30 ng/mL (>75 nmol/L)
- Potencial toxicidade: >100 ng/mL (>250 nmol/L)
Em situações específicas, pode ser útil a avaliação complementar de cálcio sérico, fósforo, paratormônio (PTH), marcadores de remodelação óssea e função renal, especialmente em casos de deficiência grave ou suspeita de distúrbios do metabolismo mineral.
Veja mais no post sobre deficiência e intoxicação por vitamina D.
Prevenção e tratamento da deficiência de vitamina D
Para manutenção de níveis adequados de vitamina D, recomenda-se:
- Exposição solar moderada e regular:
- 5-30 minutos de exposição direta (sem protetor solar) de braços e pernas, 2-3 vezes por semana
- Preferencialmente entre 10h e 15h
- A duração ideal varia conforme latitude, estação do ano e pigmentação da pele
- Alimentação balanceada incluindo fontes naturais e fortificadas
- Suplementação: indicada para grupos de risco ou com deficiência comprovada em exames
Conclusão
A vitamina D transcende a classificação tradicional de vitamina, funcionando como um hormônio pleiotrópico com ações em praticamente todos os sistemas do organismo. Sua importância para a saúde óssea é inquestionável, enquanto seu papel em outros sistemas continua sendo objeto de intensa investigação científica.
Considerando a alta prevalência de hipovitaminose D e seus impactos na saúde, é fundamental manter níveis adequados através de exposição solar apropriada, alimentação balanceada e, quando necessário, suplementação sob orientação profissional. O equilíbrio é essencial: tanto a deficiência quanto o excesso podem acarretar consequências negativas à saúde.
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