Os problemas digestivos afetam milhões de pessoas globalmente, com estimativas indicando que até 40% da população mundial experimenta algum tipo de desconforto gastrointestinal regularmente. Surpreendentemente, um fator frequentemente negligenciado na origem desses desconfortos é a qualidade da mastigação.
Enquanto muitos pacientes atribuem seus sintomas digestivos primariamente aos tipos de alimentos consumidos, a maneira como esses alimentos são ingeridos desempenha papel igualmente crucial no processo digestivo completo. Assim, este post aborda a ciência por trás da mastigação adequada, seu impacto no sistema digestivo e estratégias práticas para aprimorar este hábito fundamental para a saúde gastrointestinal.
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Transformação histórica dos alimentos e o impacto na mastigação
Ao longo da evolução humana, nossos antepassados consumiam predominantemente alimentos em seu estado natural – duros, fibrosos e minimamente processados. Sendo assim, essa característica exigia mastigação vigorosa e prolongada, exercitando naturalmente a musculatura orofacial e estimulando adequadamente o sistema digestivo.
Em contraste, a dieta contemporânea caracteriza-se pela predominância de alimentos altamente processados, refinados e macios. Estudos demonstram que, em média, dedicamos 75% menos tempo à mastigação do que nossos ancestrais de apenas algumas gerações atrás. Este declínio significativo ocorre porque:
- Os alimentos modernos requerem menos força mastigatória
- Refeições são frequentemente consumidas apressadamente devido a rotinas aceleradas
- A textura homogênea dos produtos processados reduz a necessidade de mastigação completa
No entanto, embora nossa dieta tenha sofrido profundas transformações, nossa fisiologia digestiva permanece essencialmente inalterada, criando um descompasso evolutivo com consequências para a saúde digestiva.
Fisiologia da digestão e o papel crucial da mastigação
Fase cefálica: preparando a digestão
O processo digestivo inicia-se antes mesmo do primeiro bocado. Afinal, a visão, o aroma e a antecipação dos alimentos desencadeiam a chamada “fase cefálica da digestão”, durante a qual o cérebro sinaliza ao sistema digestivo para começar a preparação. Esta fase prepara o estômago aumentando:
- A liberação de enzimas digestivas no trato gastrointestinal
- A produção de saliva na boca
- A secreção de ácido clorídrico no estômago
- Acomodação gástrica, melhor explicado abaixo
Como o estômago se prepara para receber os alimentos
Um componente crucial e frequentemente negligenciado da fase cefálica é o relaxamento adaptativo do estômago, também conhecido como “acomodação gástrica” ou “relaxamento receptivo”. Este mecanismo neuromuscular sofisticado caracteriza-se pelo relaxamento coordenado da musculatura lisa da região proximal (fundo e corpo) do estômago em antecipação à chegada dos alimentos.
O relaxamento adaptativo, mediado principalmente pelo sistema nervoso parassimpático via nervo vago, permite que o estômago aumente sua capacidade volumétrica sem elevação significativa da pressão intragástrica. Pesquisas demonstram que este mecanismo é desencadeado apenas pela visão, aroma e pensamento sobre alimentos, mesmo antes do primeiro bocado.
Este processo preparatório é fundamental para o conforto durante e após as refeições. Quando comprometido – como pode ocorrer em condições como dispepsia funcional ou após determinadas cirurgias – os pacientes frequentemente experimentam saciedade precoce e desconforto pós-prandial mesmo com pequenas quantidades de alimento. A mastigação adequada e consciente potencializa este relaxamento adaptativo, otimizando a capacidade do estômago de acomodar o bolo alimentar confortavelmente.
O estresse durante as refeições também compromete diretamente o relaxamento adaptativo do estômago. Quando estamos estressados, ansiosos ou em estado de “luta ou fuga”, o sistema nervoso simpático (adrenalina) predomina sobre o parassimpático (nervo vago), prejudicando significativamente a acomodação gástrica.
Estudos demonstram que o estresse agudo pode reduzir o relaxamento gástrico em até 40%, diminuindo o volume que o estômago consegue acomodar confortavelmente. Este fenômeno explica por que refeições consumidas em estados de estresse frequentemente resultam em sensação de plenitude precoce, desconforto epigástrico, náuseas e até refluxo. A prática de técnicas de relaxamento antes e durante as refeições, como respiração profunda e mindfulness, pode ajudar a ativar o sistema nervoso parassimpático, facilitando o relaxamento gástrico adequado e melhorando significativamente o conforto digestivo.
Mastigação é mais que triturar
A mastigação representa muito mais que a simples quebra mecânica dos alimentos. Este processo complexo desempenha múltiplas funções essenciais:
- Trituração mecânica: reduz os alimentos a partículas menores, aumentando a superfície de contato para ação enzimática.
- Digestão química inicial: a saliva contém a enzima amilase salivar (ptialina), que inicia a digestão dos carboidratos complexos, convertendo-os em moléculas menores. Estudos indicam que até 30% da digestão do amido pode ocorrer na boca durante uma mastigação adequada.
- Lubrificação: a saliva hidrata os alimentos, facilitando a formação do bolo alimentar e sua passagem pelo esôfago.
- Sinalização neurológica: o ato de mastigar envia sinais via nervo vago para o cérebro e o sistema digestivo, preparando-os para receber e processar o alimento eficientemente.
- Detecção de sabores: a mastigação completa libera compostos que estimulam as papilas gustativas, contribuindo para a saciedade e regulação do apetite.
Consequências da má mastigação
Quando engolimos alimentos inadequadamente mastigados, submetemos o sistema digestivo a um esforço para o qual não foi primariamente designado. As consequências incluem:
Impactos gástricos
Digestão química ineficiente: partículas maiores de alimento possuem menor superfície de contato para ação enzimática, tornando a digestão significativamente mais lenta.
Sobrecarga estomacal: o estômago precisa trabalhar além de sua capacidade para compensar o trabalho não realizado pela boca, resultando em maior tempo de permanência da comida no estômago.
Sintomas de desconforto: consequentemente, a mastigação insuficiente leva a sintomas como distensão abdominal, sensação de plenitude prolongada, refluxo gastroesofágico e eructação excessiva.
Impactos intestinais
- Absorção nutricional comprometida: alimentos inadequadamente mastigados e digeridos resultam em menor biodisponibilidade de nutrientes.
- Fermentação excessiva: partículas maiores de alimentos não digeridos chegam ao intestino grosso, onde são fermentadas por bactérias intestinais, potencialmente gerando gases, distensão e desconforto.
- Alterações na microbiota: consequentemente, essa sobra alimentar na luz intestinal a mastigação pode contribuir para desequilíbrios na microbiota intestinal, como a disbiose intestinal. Embora seja importante ressaltar que a disbiose é um processo multifatorial complexo, para o qual a mastigação insuficiente representa apenas um dos fatores contribuintes.
Barreiras para uma boa mastigação
Diversos fatores podem comprometer a qualidade da mastigação. Portanto, reconhecer estes obstáculos constitui o primeiro passo para superá-los:
Fatores físicos
- Problemas dentários: sensibilidade, ausência de dentes ou próteses mal ajustadas
- Disfunções temporomandibulares: limitações na amplitude de movimento da mandíbula
- Xerostomia (boca seca): redução do fluxo salivar, frequentemente associada a medicamentos ou condições médicas
Fatores comportamentais e psicológicos
- Hábito de comer rapidamente: pode ter se estabelecido desde a infância ou em resposta a rotinas aceleradas
- Distrações durante as refeições: como o uso de dispositivos eletrônicos, trabalho ou outras atividades simultâneas
- Ansiedade e estresse: estados emocionais que promovem alimentação apressada e menos consciente
Fatores culturais e sociais
- Valorização da rapidez e eficiência: cultura que prioriza produtividade em detrimento do tempo dedicado à alimentação ou auto cuidado.
- Refeições apressadas: pausas curtas para almoço em ambientes de trabalho.
- Diminuição de refeições compartilhadas: redução nas ocasiões de alimentação coletiva, que naturalmente incentivam um ritmo mais lento.
Estratégias para melhorar a mastigação
Felizmente, a mastigação é um hábito que pode ser modificado e aprimorado com práticas consistentes. Para isso, considere as seguintes estratégias baseadas em evidências:
Técnicas de mastigação consciente
- Estabeleça um número-alvo inicial: comece tentando mastigar cada porção 15-20 vezes antes de engolir. Estudos sugerem que este número pode otimizar a digestão da maioria dos alimentos.
- Pratique a alimentação mindful: dedique total atenção ao ato de comer, observando conscientemente texturas, sabores e sensações. Pesquisas demonstram que a prática mindful eating não apenas melhora a mastigação, mas também aumenta a satisfação com a refeição e melhora a digestão.
- Utilize o método 20-20-20: divida suas refeições em três fases de 20 minutos: 20 minutos para preparo mental e apreciação visual, 20 minutos para comer conscientemente, e 20 minutos para digestão tranquila antes de retomar atividades.
Modificações ambientais e comportamentais
- Elimine distrações: desligue dispositivos eletrônicos e evite outras atividades durante as refeições.
- Estabeleça horários regulares: refeições em horários consistentes ajudam a preparar o sistema digestivo e permitir tempo adequado para mastigação.
- Utilize talheres menores: coloque o garfo ou a colher no prato entre as porções para evitar preparar o próximo bocado enquanto ainda mastiga o anterior.
- Hidrate-se adequadamente antes das refeições: a hidratação adequada contribui para melhor produção de saliva, facilitando a mastigação e digestão.
Alimentos que incentivam a mastigação
- Incorpore alimentos com texturas diversas: inclua vegetais crus, frutas frescas e grãos integrais que naturalmente requerem mais mastigação.
- Reduza a proporção de alimentos ultraprocessados: limite itens de textura homogênea que podem ser facilmente engolidos sem mastigação adequada.
- Experimente contrastes de textura: combine alimentos macios e crocantes na mesma refeição para estimular maior consciência textural.
Conclusão
A mastigação adequada representa um elo fundamental entre a alimentação e a saúde digestiva. Porém, frequentemente negligenciado. No entanto, ao compreender a ciência por trás deste processo aparentemente simples, podemos implementar mudanças significativas em nossos hábitos alimentares.
Pequenas modificações no comportamento mastigatório podem proporcionar benefícios substanciais para o sistema digestivo, ajudando a prevenir desconfortos comuns e potencialmente contribuindo para a saúde global. Lembre-se de que a digestão saudável não depende apenas do que comemos, mas fundamentalmente de como comemos.
Ao incorporar conscientemente as técnicas e estratégias apresentadas neste post, você estará dando um importante passo inicial para otimizar sua saúde digestiva através de um dos processos mais básicos e essenciais do corpo humano: a mastigação.
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