Nutricionista Adriana Lauffer

Importância da mastigação para uma boa digestão

Importância da mastigação para uma boa digestão

Os problemas digestivos afetam milhões de pessoas globalmente, com estimativas indicando que até 40% da população mundial experimenta algum tipo de desconforto gastrointestinal regularmente. Surpreendentemente, um fator frequentemente negligenciado na origem desses desconfortos é a qualidade da mastigação.

Enquanto muitos pacientes atribuem seus sintomas digestivos primariamente aos tipos de alimentos consumidos, a maneira como esses alimentos são ingeridos desempenha papel igualmente crucial no processo digestivo completo. Assim, este post aborda a ciência por trás da mastigação adequada, seu impacto no sistema digestivo e estratégias práticas para aprimorar este hábito fundamental para a saúde gastrointestinal.

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Importância da mastigação para uma boa digestão

Transformação histórica dos alimentos e o impacto na mastigação

Ao longo da evolução humana, nossos antepassados consumiam predominantemente alimentos em seu estado natural – duros, fibrosos e minimamente processados. Sendo assim, essa característica exigia mastigação vigorosa e prolongada, exercitando naturalmente a musculatura orofacial e estimulando adequadamente o sistema digestivo.

Em contraste, a dieta contemporânea caracteriza-se pela predominância de alimentos altamente processados, refinados e macios. Estudos demonstram que, em média, dedicamos 75% menos tempo à mastigação do que nossos ancestrais de apenas algumas gerações atrás. Este declínio significativo ocorre porque:

  • Os alimentos modernos requerem menos força mastigatória
  • Refeições são frequentemente consumidas apressadamente devido a rotinas aceleradas
  • A textura homogênea dos produtos processados reduz a necessidade de mastigação completa

No entanto, embora nossa dieta tenha sofrido profundas transformações, nossa fisiologia digestiva permanece essencialmente inalterada, criando um descompasso evolutivo com consequências para a saúde digestiva.

Fisiologia da digestão e o papel crucial da mastigação

Fase cefálica: preparando a digestão

O processo digestivo inicia-se antes mesmo do primeiro bocado. Afinal, a visão, o aroma e a antecipação dos alimentos desencadeiam a chamada “fase cefálica da digestão”, durante a qual o cérebro sinaliza ao sistema digestivo para começar a preparação. Esta fase prepara o estômago aumentando:

  • A liberação de enzimas digestivas no trato gastrointestinal
  • A produção de saliva na boca
  • A secreção de ácido clorídrico no estômago
  • Acomodação gástrica, melhor explicado abaixo

Como o estômago se prepara para receber os alimentos

Um componente crucial e frequentemente negligenciado da fase cefálica é o relaxamento adaptativo do estômago, também conhecido como “acomodação gástrica” ou “relaxamento receptivo”. Este mecanismo neuromuscular sofisticado caracteriza-se pelo relaxamento coordenado da musculatura lisa da região proximal (fundo e corpo) do estômago em antecipação à chegada dos alimentos.

O relaxamento adaptativo, mediado principalmente pelo sistema nervoso parassimpático via nervo vago, permite que o estômago aumente sua capacidade volumétrica sem elevação significativa da pressão intragástrica. Pesquisas demonstram que este mecanismo é desencadeado apenas pela visão, aroma e pensamento sobre alimentos, mesmo antes do primeiro bocado.

Este processo preparatório é fundamental para o conforto durante e após as refeições. Quando comprometido – como pode ocorrer em condições como dispepsia funcional ou após determinadas cirurgias – os pacientes frequentemente experimentam saciedade precoce e desconforto pós-prandial mesmo com pequenas quantidades de alimento. A mastigação adequada e consciente potencializa este relaxamento adaptativo, otimizando a capacidade do estômago de acomodar o bolo alimentar confortavelmente.

O estresse durante as refeições também compromete diretamente o relaxamento adaptativo do estômago. Quando estamos estressados, ansiosos ou em estado de “luta ou fuga”, o sistema nervoso simpático (adrenalina) predomina sobre o parassimpático (nervo vago), prejudicando significativamente a acomodação gástrica.

Estudos demonstram que o estresse agudo pode reduzir o relaxamento gástrico em até 40%, diminuindo o volume que o estômago consegue acomodar confortavelmente. Este fenômeno explica por que refeições consumidas em estados de estresse frequentemente resultam em sensação de plenitude precoce, desconforto epigástrico, náuseas e até refluxo. A prática de técnicas de relaxamento antes e durante as refeições, como respiração profunda e mindfulness, pode ajudar a ativar o sistema nervoso parassimpático, facilitando o relaxamento gástrico adequado e melhorando significativamente o conforto digestivo.

Mastigação é mais que triturar

A mastigação representa muito mais que a simples quebra mecânica dos alimentos. Este processo complexo desempenha múltiplas funções essenciais:

  1. Trituração mecânica: reduz os alimentos a partículas menores, aumentando a superfície de contato para ação enzimática.
  2. Digestão química inicial: a saliva contém a enzima amilase salivar (ptialina), que inicia a digestão dos carboidratos complexos, convertendo-os em moléculas menores. Estudos indicam que até 30% da digestão do amido pode ocorrer na boca durante uma mastigação adequada.
  3. Lubrificação: a saliva hidrata os alimentos, facilitando a formação do bolo alimentar e sua passagem pelo esôfago.
  4. Sinalização neurológica: o ato de mastigar envia sinais via nervo vago para o cérebro e o sistema digestivo, preparando-os para receber e processar o alimento eficientemente.
  5. Detecção de sabores: a mastigação completa libera compostos que estimulam as papilas gustativas, contribuindo para a saciedade e regulação do apetite.

Consequências da má mastigação

Quando engolimos alimentos inadequadamente mastigados, submetemos o sistema digestivo a um esforço para o qual não foi primariamente designado. As consequências incluem:

Impactos gástricos

Digestão química ineficiente: partículas maiores de alimento possuem menor superfície de contato para ação enzimática, tornando a digestão significativamente mais lenta.

Sobrecarga estomacal: o estômago precisa trabalhar além de sua capacidade para compensar o trabalho não realizado pela boca, resultando em maior tempo de permanência da comida no estômago.

Sintomas de desconforto: consequentemente, a mastigação insuficiente leva a sintomas como distensão abdominal, sensação de plenitude prolongada, refluxo gastroesofágico e eructação excessiva.

Impactos intestinais

  • Absorção nutricional comprometida: alimentos inadequadamente mastigados e digeridos resultam em menor biodisponibilidade de nutrientes.
  • Fermentação excessiva: partículas maiores de alimentos não digeridos chegam ao intestino grosso, onde são fermentadas por bactérias intestinais, potencialmente gerando gases, distensão e desconforto.
  • Alterações na microbiota: consequentemente, essa sobra alimentar na luz intestinal a mastigação pode contribuir para desequilíbrios na microbiota intestinal, como a disbiose intestinal. Embora seja importante ressaltar que a disbiose é um processo multifatorial complexo, para o qual a mastigação insuficiente representa apenas um dos fatores contribuintes.

Barreiras para uma boa mastigação

Diversos fatores podem comprometer a qualidade da mastigação. Portanto, reconhecer estes obstáculos constitui o primeiro passo para superá-los:

Fatores físicos

  • Problemas dentários: sensibilidade, ausência de dentes ou próteses mal ajustadas
  • Disfunções temporomandibulares: limitações na amplitude de movimento da mandíbula
  • Xerostomia (boca seca): redução do fluxo salivar, frequentemente associada a medicamentos ou condições médicas

Fatores comportamentais e psicológicos

  • Hábito de comer rapidamente: pode ter se estabelecido desde a infância ou em resposta a rotinas aceleradas
  • Distrações durante as refeições: como o uso de dispositivos eletrônicos, trabalho ou outras atividades simultâneas
  • Ansiedade e estresse: estados emocionais que promovem alimentação apressada e menos consciente

Fatores culturais e sociais

  • Valorização da rapidez e eficiência: cultura que prioriza produtividade em detrimento do tempo dedicado à alimentação ou auto cuidado.
  • Refeições apressadas: pausas curtas para almoço em ambientes de trabalho.
  • Diminuição de refeições compartilhadas: redução nas ocasiões de alimentação coletiva, que naturalmente incentivam um ritmo mais lento.

Estratégias para melhorar a mastigação

Felizmente, a mastigação é um hábito que pode ser modificado e aprimorado com práticas consistentes. Para isso, considere as seguintes estratégias baseadas em evidências:

Técnicas de mastigação consciente

  1. Estabeleça um número-alvo inicial: comece tentando mastigar cada porção 15-20 vezes antes de engolir. Estudos sugerem que este número pode otimizar a digestão da maioria dos alimentos.
  2. Pratique a alimentação mindful: dedique total atenção ao ato de comer, observando conscientemente texturas, sabores e sensações. Pesquisas demonstram que a prática mindful eating não apenas melhora a mastigação, mas também aumenta a satisfação com a refeição e melhora a digestão.
  3. Utilize o método 20-20-20: divida suas refeições em três fases de 20 minutos: 20 minutos para preparo mental e apreciação visual, 20 minutos para comer conscientemente, e 20 minutos para digestão tranquila antes de retomar atividades.

Modificações ambientais e comportamentais

  1. Elimine distrações: desligue dispositivos eletrônicos e evite outras atividades durante as refeições.
  2. Estabeleça horários regulares: refeições em horários consistentes ajudam a preparar o sistema digestivo e permitir tempo adequado para mastigação.
  3. Utilize talheres menores: coloque o garfo ou a colher no prato entre as porções para evitar preparar o próximo bocado enquanto ainda mastiga o anterior.
  4. Hidrate-se adequadamente antes das refeições: a hidratação adequada contribui para melhor produção de saliva, facilitando a mastigação e digestão.

Alimentos que incentivam a mastigação

  1. Incorpore alimentos com texturas diversas: inclua vegetais crus, frutas frescas e grãos integrais que naturalmente requerem mais mastigação.
  2. Reduza a proporção de alimentos ultraprocessados: limite itens de textura homogênea que podem ser facilmente engolidos sem mastigação adequada.
  3. Experimente contrastes de textura: combine alimentos macios e crocantes na mesma refeição para estimular maior consciência textural.

Conclusão

A mastigação adequada representa um elo fundamental entre a alimentação e a saúde digestiva. Porém, frequentemente negligenciado. No entanto, ao compreender a ciência por trás deste processo aparentemente simples, podemos implementar mudanças significativas em nossos hábitos alimentares.

Pequenas modificações no comportamento mastigatório podem proporcionar benefícios substanciais para o sistema digestivo, ajudando a prevenir desconfortos comuns e potencialmente contribuindo para a saúde global. Lembre-se de que a digestão saudável não depende apenas do que comemos, mas fundamentalmente de como comemos.

Ao incorporar conscientemente as técnicas e estratégias apresentadas neste post, você estará dando um importante passo inicial para otimizar sua saúde digestiva através de um dos processos mais básicos e essenciais do corpo humano: a mastigação.

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