A relação entre o intestino e o cérebro é um campo fascinante e complexo que tem ganhado cada vez mais atenção nos estudos de saúde e bem-estar. A disbiose, um desequilíbrio microbiano no trato gastrointestinal, tem se mostrado fundamental nessa conexão. O eixo cérebro-intestino representa essa comunicação bidirecional entre o sistema nervoso central e o sistema digestivo. Nessa comunicação se destaca a interdependência entre a microbiota intestinal, a saúde mental e diversas funções cognitivas. Conhecer essa interessante relação pode oferecer insights valiosos para compreender e tratar uma variedade de condições médicas, desde distúrbios gastrointestinais até questões neuropsiquiátricas.
Eubiose
Uma vez com saúde, nosso organismo vive um regime conhecido como eubiose. Na eubiose existe equilíbrio ou simbiose entre os microrganismos bons, ruins e o sistema imunológico da mucosa intestinal. Ou seja, a microbiota intestinal se apresenta estável e com grande diversidade de espécies e gêneros.
Nesse modo chamado eubiose, antígenos “bons” são reconhecidos, havendo resposta saudável da mucosa intestinal. Dessa forma, a mucosa intestinal mantém sua produção de IgA, muco, defensinas e mantendo funcionantes os “tight junctions” intestinais. Assim, ela garante uma permeabilidade intestinal adequada e intacta.
Disbiose
Ao contrário, quando ocorre predomínio de bactérias patobiontes, ou quando há perda da diversidade bacteriana ou de sua estabilidade, entramos em um processo conhecido como disbiose. A disbiose influencia não apenas a saúde digestiva, mas também desempenha um papel crucial na função cerebral e no sistema nervoso.
Este estado disbiótico faz com que a mucosa intestinal comece a funcionar de forma não saudável. Acontece diminuição da produção de muco, IgA, defensinas e os “tight junctions” deixam de funcionar de maneira adequada.
Isto leva ao aumento da permeabilidade intestinal, o que promove a passagem de antígenos bacterianos e alimentares, produtos bacterianos e de outros microrganismos, para camadas mais profundas da mucosa intestinal. Como consequência, as células do sistema imune são atraídas para este local (mastócitos, por exemplo). Assim, ocorre liberação de várias citocinas inflamatórias que, por sua vez, atrai mais células imunes para este local. Inicia-se, então, uma cascata inflamatória.
Este estado inflamatório é “percebido” por fibras nervosas nervosas aferentes. Elas captam estas informações e as transmitem para o cérebro, que processa estes dados e envia resposta (via eferente). Essa resposta modifica todos os sistemas, via comunicação direta do nosso cérebro (hipotálamo) com a hipófise, e desta, com as glândulas adrenais, tiroide, gônadas, etc.
O nervo vago
O cérebro se comunica diretamente com nosso tubo digestivo através do nervo vago. Dessa forma, ele modula a sensibilidade, secreções e motilidade intestinais, participando diretamente da fisiopatologia de várias doenças digestivas. Essas doenças são intestino irritável, dispepsia funcional, doença do refluxo gastroesofágico, diarreia, constipação, doenças inflamatórias, dentre outras.
Resultados consistentes com estas observações são embasados por estudos com estimulação vagal em afecções como depressão refratária, síndromes álgicas crônicas e certos tipos de epilepsia. Relatos mais antigos, com humanos, mostraram que após vagotomias, usualmente utilizadas para tratamento de doença péptico ulcerosas, poderiam estar relacionadas com uma maior incidência de desordens psiquiátricas.
Neurotransmissores
A microbiota pode também exercer seu efeito direta e indiretamente sobre células neuroendócrinas intestinais. Dessa forma, ela pode alterar a produção de vários neurotransmissores e hormônios, entre eles: as incretinas, serotonina, dopamina, GABA, noradrenalina, colecistoquinina, etc.. Uma vez absorvidos, são transportados pelo sistema circulatório alterando as mais variadas funções de nosso corpo, inclusive o sistema nervoso central e a barreira hematoencefálica.
Mais de 30 hormônios já foram descritos no intestino. Sabe-se que praticamente 95% de toda nossa serotonina também é encontrada neste local. Embora este peptídeo não consiga passar a barreira hematoencefálica, ele pode interferir na transmissão das informações do intestino para o sistema nervoso central (SNC) e assim atuar sobre o eixo cérebro-intestino.
Ocorrem modificações motoras, secretórias e de sensibilidade intestinais, além de alterações sistêmicas, metabólicas e bioquímicas, capazes de modificar toda fisiologia de nosso organismo. As citocinas, produzidas na submucosa do intestino, podem ganhar os vasos sanguíneos, alcançando a barreira hematoencefálica, interferindo sobre o SNC. Chegando lá, podem alterar a expressão de vários receptores, como os serotoninérgicos. Além disso, podem modular a função da micróglia, atuando de forma direta na fisiopatologia da depressão, ansiedade, fadiga crônica, perda ou aumento do apetite, Parkinson, autismo, etc.
A microbiota pode também metabolizar carboidratos não digeríveis (prebióticos). Através dessa fermentação, produz de vários ácidos graxos de cadeira curta, como: butirato, propionato, acetato, etc. Estes, por sua vez, podem alcançar o cérebro através da circulação sanguínea, modificando a permeabilidade da barreira hematoencefálica e funções cerebrais.
Apesar do eixo cérebro intestinal ser o mais conhecido e estudado, vários outros “eixos” têm sido descritos como, por exemplo, o eixo intestino-cérebro-pulmonar, que tem ganhado ainda mais importância depois do início da pandemia secundária à infecção pelo SARS-Cov-2.
Microbiota e formação cerebral
Outro ponto de relevância é a participação da relação intestino cérebro com a formação de nosso cérebro. Paralelamente ao aumento do número e diversidade bacteriana encontrada nos três primeiros anos de via (veja Como as bactérias colonizam nosso intestino), ocorre também o desenvolvimento de nosso sistema nervoso, havendo modulação da neurogênese, do crescimento dendrítico, mielinização, plasticidade neuronal, desenvolvimento da micróglia e conexões neuronais.
Este processo se continua depois destes 1000 primeiros dias sendo influenciado pela microbiota. Entretanto, existem algumas fases de nosso desenvolvimento neurológico onde a influência da microbiota e do seu desequilíbrio parecem ser mais importantes. Essas fases são: a) após o término da amamentação, b) no início da adolescência c) início da velhice.
Existem várias evidências na literatura que qualquer modificação mais significativa sobre a microbiota nestes períodos traz um impacto muito mais importante sobre nosso sistema nervoso do que em outras ocasiões. Um exemplo claro disso é o que chamamos de “inflammaging“.
Inflamaging
“Inflamaging” é um termo que combina as palavras “inflamação” e “envelhecimento”, descrevendo um estado crônico de inflamação de baixo grau que está associado ao envelhecimento. À medida que envelhecemos, o sistema imunológico pode se tornar menos eficiente em regular a resposta inflamatória do corpo. Isso pode resultar em um estado persistente de inflamação de baixo nível, caracterizado pela produção aumentada de citocinas pró-inflamatórias e outros mediadores inflamatórios.
Esse estado inflamatório crônico pode contribuir para o desenvolvimento e progressão de uma série de doenças relacionadas à idade, como doenças cardíacas, diabetes, artrite, declínio cognitivo e até mesmo certos tipos de câncer. Acredita-se que o “inflamaging” seja influenciado por vários fatores, incluindo estilo de vida, dieta, estresse, exposição a toxinas e até mesmo pela composição da microbiota intestinal.
A modificação da microbiota na senescência, especialmente a diminuição de bifidobactérias, leva a estado inflamatório com grande predomínio de IL-6, interferon-gama e TNF-alfa, fatores responsáveis diretamente pelo processo do envelhecimento e que têm influência direta na perda cognitiva, neuronal e sináptica observadas no idoso.
De interesse especial é a capacidade que estas informações vindas do intestino têm em alterar nossas funções cerebrais, seja por via vagal, hormonal ou mesmo imunológica. Portanto, a saúde intestinal está diretamente relacionada com alterações neuropsíquicas, participando claramente da fisiopatologia de várias afecções neurológicas e psiquiátricas, como depressão, ansiedade, autismo, esquizofrenia, distúrbio bipolar, etc.