A dieta baixa em FODMAPs representa uma abordagem terapêutica fundamental para pacientes com Síndrome do Intestino Irritável (SII), com sucesso de 70% na melhora dos sintomas. No entanto, em torno de 30% dos pacientes não experimentam essa mesma melhora. Recentemente, pesquisas revelaram que esses pacientes podem apresentar alergias alimentares não clássicas. Um fenômeno pode explicar, ao menos em parte, e que é frequentemente negligenciado na avaliação clínica destes pacientes. Nesse post, vamos entender melhor como é possível que metade dos pacientes com síndrome do intestino irritável possam ter, também, alergia alimentar.
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Evidências científicas recentes
Um estudo revolucionário publicado na revista Gastroenterology em 2019, conduzido por Fritscher-Ravens e colaboradores, trouxe novas perspectivas sobre este tema. Os pesquisadores investigaram 108 pacientes com SII refratária ao tratamento convencional e que apresentavam testes alérgicos tradicionais negativos. Utilizando tecnologia avançada de imagem, os cientistas conseguiram documentar reações alérgicas em tempo real, revelando um panorama completamente novo da doença.
Metodologia inovadora
A pesquisa empregou uma combinação de endoscopia digestiva alta com endomicroscopia confocal a laser, uma técnica sofisticada que permite visualização microscópica da mucosa intestinal com aumento de até 1000 vezes. Esta abordagem possibilita a observação direta das reações celulares em tempo real, superando as limitações dos testes convencionais.
Durante o procedimento, os pesquisadores administravam, através de um cateter endoscópico, seis soluções diferentes contendo:
- Trigo
- Leite
- Soja
- Fermento
- Ovo
- Uma solução controle (placebo)
Cada solução (20ml) era introduzida diretamente no duodeno, enquanto a mucosa intestinal era monitorada continuamente pela endomicroscopia, permitindo a documentação precisa das alterações celulares.
Descobertas surpreendentes
Os resultados do estudo foram reveladores e ajudam a explicar por que muitos pacientes não respondem às abordagens terapêuticas tradicionais:
- Alta prevalência de reações alérgicas: aproximadamente 50% dos pacientes apresentaram reações alérgicas imediatas a pelo menos um dos alimentos testados, apesar de terem testes alérgicos convencionais negativos.
- Reações celulares imediatas versus sintomas tardios: embora as alterações celulares na mucosa intestinal ocorressem imediatamente após o contato com o alimento, os sintomas clínicos manifestavam-se tardiamente (horas a dias depois), explicando a dificuldade dos pacientes em associar determinados alimentos aos seus sintomas.
- Mecanismos fisiopatológicos complexos: as principais alterações observadas incluíam:
- Aumento significativo e imediato da permeabilidade intestinal
- Infiltração de eosinófilos (células inflamatórias características de processos alérgicos)
- Alterações na secreção entérica
- Modificações na motilidade intestinal
- Hipersensibilidade visceral
- Natureza não-IgE mediada: as reações observadas não eram mediadas por anticorpos IgE (característicos das alergias “clássicas”), explicando por que os testes alérgicos convencionais, como testes cutâneos (Prick test) e dosagem de IgE específica no sangue, resultavam negativos.
Reação alérgica na síndrome do intestino irritável
Nesse estudo de Fritscher-Ravens e colaboradores, as reações alérgicas não clássicas observadas na Síndrome do Intestino Irritável eram mediadas principalmente por eosinófilos e linfócitos T. Diferentemente das alergias clássicas (mediadas por IgE), que envolvem mastócitos e basófilos com resposta imediata, estas reações envolvem:
- Eosinófilos: células do sistema imune que foram observadas infiltrando a mucosa intestinal após o contato com alimentos específicos. Os eosinófilos liberam proteínas citotóxicas e mediadores inflamatórios que danificam o tecido local.
- Linfócitos T específicos: particularmente linfócitos T auxiliares tipo 2 (Th2) e linfócitos T auxiliares tipo 17 (Th17), que orquestram uma resposta inflamatória mais lenta e prolongada.
- Células dendríticas: que atuam como apresentadoras de antígenos e iniciam a cascata imunológica.
Este mecanismo imunológico, frequentemente denominado “hipersensibilidade tipo IV” ou “hipersensibilidade tardia”, explica por que as manifestações clínicas ocorrem horas ou até dias após a ingestão do alimento, tornando extremamente difícil para os pacientes estabelecerem a relação causa-efeito entre um alimento específico e seus sintomas.
O estudo demonstrou claramente que o contato do alimento com a mucosa intestinal desencadeava imediatamente alterações celulares, incluindo aumento da permeabilidade intestinal e recrutamento destas células inflamatórias, embora os sintomas só se manifestassem posteriormente.
Implicações clínicas
Esta pesquisa muda significativamente nossa compreensão sobre a SII refratária ao tratamento e traz importantes implicações para a prática clínica:
- Reavaliação diagnóstica: pacientes que não respondem à dieta baixa em FODMAPs merecem investigação mais aprofundada para possíveis alergias alimentares não clássicas, mesmo quando os testes alérgicos convencionais são negativos.
- Abordagem multifatorial: a SII deve ser compreendida como uma condição potencialmente heterogênea, onde diferentes mecanismos fisiopatológicos (sensibilidade aos FODMAPs, intolerância à histamina, alergias alimentares não clássicas e fatores psicológicos) podem coexistir ou predominar em diferentes pacientes.
Influência de fatores psicológicos
É fundamental reconhecer que fatores psicológicos podem influenciar significativamente os sintomas gastrointestinais. No entanto, isso não significa que a condição seja “apenas psicológica” ou que os sintomas sejam imaginários. Na verdade, o eixo cérebro-intestino representa uma via bidirecional onde processos inflamatórios intestinais podem afetar o funcionamento cerebral e vice-versa.
Esta perspectiva integrativa permite uma abordagem mais compassiva, reconhecendo tanto os mecanismos biológicos quanto psicológicos, sem culpabilizar exclusivamente alimentos ou fatores emocionais. Em muitos casos, a combinação de intervenções dietéticas específicas com técnicas de manejo do estresse e suporte psicológico oferece os melhores resultados.
Conclusões
A jornada de tratamento da SII, especialmente quando complicada por alergias alimentares não clássicas, exige paciência, persistência e uma abordagem sistemática. Portanto, se você não obteve melhora significativa com as intervenções realizadas até o momento, considere a possibilidade de alergias alimentares não mediadas por IgE como fator contribuinte.
O processo de identificação dessas sensibilidades pode ser desafiador e frequentemente requer ajustes graduais no plano terapêutico. Trabalhe em parceria com uma equipe multidisciplinar que inclua gastroenterologista e nutricionista especializados em distúrbios gastrointestinais funcionais para desenvolver um plano personalizado.
Lembre-se: a recuperação geralmente ocorre de forma gradual, com períodos de avanços e recuos. Mantenha-se perseverante, pois mesmo os casos mais complexos de SII podem alcançar melhora significativa com a abordagem adequada. O conhecimento crescente sobre os múltiplos mecanismos envolvidos na SII, incluindo as alergias alimentares não clássicas, abre novas possibilidades terapêuticas para pacientes que anteriormente tinham opções limitadas.
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Mas, lembre-se: não é indicado manter a fase de exclusão da dieta de exclusão por mais que 6 semanas e, além disso, o acompanhamento profissional é importante porque parte dos pacientes possuem outras condições clínicas associadas que o protocolo não resolverá por completo e, portanto, necessita de condutas adicionais.
Referências
- Fritscher-Ravens A, Pflaum T, Mösinger M, et al. Many Patients With Irritable Bowel Syndrome Have Atypical Food Allergies Not Associated With Immunoglobulin E. Gastroenterology. 2019;157(1):109-118.e5.
- Catassi G, Lionetti E, Gatti S, Catassi C. The Low FODMAP Diet: Many Question Marks for a Catchy Acronym. Nutrients. 2017;9(3):292.
- Lacy BE, Pimentel M, Brenner DM, et al. ACG Clinical Guideline: Management of Irritable Bowel Syndrome. American Journal of Gastroenterology. 2021;116(1):17-44.
- Nowak-Węgrzyn A, Katz Y, Mehr SS, Koletzko S. Non-IgE-mediated gastrointestinal food allergy. Journal of Allergy and Clinical Immunology. 2015;135(5):1114-1124.
- Van den Houte K, Carbone F, Pannemans J, et al. Food Allergy and IBS, Is There a Link? Gut. 2019;24(3):272-279.